Porque o Dia do Fico ficou na História

O Dia do Fico foi um acontecimento decisivo para a Independência do Brasil, como já foi aqui abordado (  A centelha da Independência – O Brasil e sua História (obrasilesuahistoria.com.br) ). Passados 200 anos, ele continua atrair atenção de historiadores e pesquisadores que buscam estabelecer a sua importância e o seu significado no processo que culminou no Sete de Setembro.

Apelando à contra-factualidade, se apagarmos da História o Dia do Fico, constata-se facilmente a sua importância. Sem a unidade de propósito e os imediatos efeitos políticos que ele produziu, dificilmente Brasil se faria independente e unido como nação.

O que é notável, ainda que praticamente ignorado, é o quanto o Dia do Fico esteve perto de ser alijado da História, mesmo depois de ter ocorrido de fato. Bastava que as tropas portuguesas da guarnição do Rio de Janeiro, sob o comando do General Jorge de Avilez, mais uma vez, coagissem Dom Pedro a atender os interesses de Lisboa, como haviam feito com o príncipe em junho de 1821, e antes com Dom João VI, sem esquecer a matança que praticaram no dia 21 de abril contra a assembleia popular na Praça do Comércio que reivindicava a permanência do Rei no Brasil.

Dois dias após o Fico, o voluntarismo militar português, estimulado por Avilez, estava em marcha para repetir a imposição, pela força, da vontade política das Cortes. Depois de uma altercação no Teatro São João com o Tenente-Coronel José Joaquim de Lima e Silva[1], o comandante do 11º Batalhão da Divisão portuguesa, o Tenente-Coronel José Maria da Costa, dirigiu-se ao seu aquartelamento, armou toda a tropa e concitou os demais comandantes de unidade a se reunirem a ele para coagir o Príncipe a embarcar para a Europa naquela mesma noite, dia 11 de janeiro. Era a repetição do assembleísmo militar português, um misto de indisciplina e nacionalismo, de que se valia Avilez para fugir à responsabilidade perante o Rei pelos atos que cometia.

Ciente da ameaça que tomava corpo, Dom Pedro decidiu enviar a Princesa Leopoldina e seu filho, o Príncipe João Carlos, então seriamente doente, para a Fazenda Santa Cruz, um movimento que, executado de maneira apressada e improvisada, na madrugada de 12, contribuiu para a morte do jovem, uma tragédia que Leopoldina atribuiu à afronta militar portuguesa e da qual jamais se esqueceu. Comunicou-se ainda Dom Pedro com o comandante da fragata inglesa Doris, pedindo eventual asilo a bordo. Com efeito, a Divisão portuguesa, denominada Auxiliadora, reunira-se equipada e armada no Largo do Moura[2], pronta para intervir nos acontecimentos.

Porém, dessa vez, a ameaça da Divisão Auxiliadora não ficaria sem resposta. O Brasil tinha tropas e comandantes para sustentar a vontade do Regente, em torno do qual se reuniram povo e elite. As forças portuguesas, habituadas a vigiar, intimidar e agredir, iriam encontrar pela frente efetivos brasileiros dispostos a enfrentá-las.

Na noite do dia 11, todas as tropas brasileiras, regulares e milicianas, da guarnição militar do Rio de Janeiro começaram a se concentrar no Campo de Santana, inclusive os Regimentos de Henriques, integrados exclusivamente por homens negros, e o de Pardos. Uma seção de artilharia, a três peças, foi tracionada por cavalos da Palácio Real, do aquartelamento da Praia Vermelha até o Campo de Santana, à qual se reuniram mais duas peças. E as assinaturas na petição popular que convenceram o Príncipe a ficar no Brasil não ficaram no papel: civis, que se armaram como puderam, reuniram-se às tropas nacionais.

E colocando-se à frente dessa tropa, vieram comandantes de peso, inicialmente o General Joaquim de Oliveira Álvares e em seguida o Tenente-General Joaquim Xavier Curado. Não eram apenas chefes militares de prestígio, eram heróis. Oliveira Álvares, português de nascença, à frente de tropas da Legião de São Paulo, Dragões do Rio Grande, milicianos e voluntários, vencera a Batalha de Carumbé (27/10/1816) contra forças superiores em número do caudilho Artigas, na Guerra de 1816 pela Fronteira Sul. E Curado, nascido em Goiás, fora o comandante da tropa brasileira que arcou com a parte mais árdua dessa guerra, conduzindo vitoriosamente operações e campanhas desse conflito que se estendeu de 1816 a 1820.   

Ambos possuíam grande experiência de combate e, além de dotados de sólido conhecimento profissional, tinham o respeito e a admiração da tropa. Chegando ao Campo de Santana para assumir o comando da força brasileira, Curado foi ovacionado pelos soldados e civis armados que ali se reuniam em torno da causa da Independência.

A essa altura, na manhã do dia 12, depois de ter tentado intimidar o Príncipe em uma visita feita ao palácio durante a madrugada, Avilez havia disposto sua tropa no Morro do Castelo, de onde poderia ameaçar toda a cidade. Dom Pedro o havia repelido, ameaçando mandar as tropas portuguesas e “a ele barra afora”. O Príncipe conhecia esse militarismo e antes, em junho, advertira os oficiais portugueses de que “tropa não é nação, pertence à nação”.  

Apesar de inferiores em treinamento, as tropas brasileiras eram superiores em número, possuíam tanta artilharia quanto a Divisão Auxiliadora e tinham à sua frente comandantes competentes com experiência de combate, um diferencial decisivo. Expedidas as ordens, elas se desdobraram nas ruas e acessos ao Morro do Castelo, prontas para a luta.

Avilez percebeu que não poderia vencer e aceitou se passar com toda a divisão para o outro lado da Baía de Guanabara, de onde seria definitivamente evacuado para a Europa no dia 15 de fevereiro.

O que mudara? O Príncipe Dom Pedro tinha agora meios para respaldar sua vontade política. Dali para frente, seus atos legítimos e legais seriam sustentados por forças militares nacionais, compostas de brasileiros ou não, que assumiam a consciência do sentimento de soberania e cumpriam o seu papel de instrumento de defesa da sociedade, o Exército e Marinha.

Na noite do dia 12, Dom Pedro escreveu para as províncias de São Paulo e Minas Gerais pedindo-lhes tropas para guarnecer a capital, em substituição às brasileiras da guarnição despachadas para vigiar a Divisão Auxiliadora reunida em Praia Grande, Niterói. O Príncipe assumia assim o papel de comandante-em-chefe da nascente nação brasileira. Em pouco tempo, a Guerra da Independência seria travada em terra e mar, em diferentes partes do País, até a expulsão definitiva das tropas portuguesas e a aclamação de Dom Pedro em todo o território nacional.   

Caso Avilez tivesse capturado Dom Pedro e a Princesa Leopoldina na noite de 11 de janeiro, como indicavam o desdobramento das tropas portuguesas e as atitudes de seus comandantes, o Dia do Fico teria sido uma mera declaração de intenções, sem poder e vontade que o sustentassem.

Mas o Dia do Fico ficou na História e se tornou o acontecimento decisivo que deflagrou, de forma irreversível, o processo de Independência. Naquele dia memorável, o Brasil ficou mais do que com o Príncipe Dom Pedro.

Ficou com o curso de sua História, porque tinha armas que pertenciam à Nação.   


[1] Tio do futuro Duque de Caxias, assumiria, mais tarde, o comando das tropas brasileiras na Guerra da Independência na Bahia.

[2] Atual praça Marechal Âncora, no centro do Rio de Janeiro, foi desfeito para Exposição Internacional de 1922, comemorativa do Centenário da Independência. Tomou esse nome por que no local fora construído o quartel para o Regimento de Moura, que chegou ao Brasil, vindo de Portugal, em 1767 para tomar parte das guerras no Sul contra os espanhóis. Ficava próximo ao Morro do Castelo.