As Missões na História Militar do Brasil Cenário da Guerra dos Cem Anos no Prata

  1. INTRODUÇÃO

Vamos percorrer quatro séculos, analisando os fatos, acontecimentos e desenvolvimentos históricos que fizeram das Missões um espaço decisivo para a construção da Fronteira Sul e para a conformação geopolítica do Brasil na região do Prata. 

  • AS MISSÕES ORIENTAIS

A disputa entre portugueses e espanhóis, e seus descendentes, por territórios na região do Prata decorre do processo histórico de construção de um espaço rico em recursos naturais e bem articulado com outras regiões do continente e o Atlântico Sul. Não por coincidência, os núcleos geohistóricos dos quatro membros originais do Mercosul estão nessa região e eles dependeram, e dependem, dos grandes rios da bacia hidrográfica que dá nome à região, o Prata, cuja importância histórica advém do desbravamento do continente sul-americano já no início do século XVI.

No início do século XVI, a nova corrida marítima entre portugueses e espanhóis se voltou para o extremo sul do continente. Os espanhóis, seguindo sua estratégia de chegar às Índias navegando sempre por oeste, consideravam “pacificamente o litoral vicentino (de São Vicente) dentro de seu meridiano” (CALMON, 1939, p. 157). Isso era coerente com o desejo espanhol de possuir pontos de apoio no sul das terras descobertas por Cabral em 1500, de forma a lhes permitir tatear o litoral até encontrarem a passagem no extremo sul, o que Fernão de Magalhães iria conseguir em 1520, ao descobrir e cruzar o estreito que levara o seu nome. Por sua vez, os portugueses, ciosos de sua descoberta, e preocupados com o desembocar espanhol no Pacífico onde se localizavam as preciosas ilhas Molucas, procuravam se antecipar e se interpor aos objetivos espanhóis.

No final do século XVI, três núcleos, S. Vicente (1532), Assunção (1537) e Buenos Aires (1580) conformavam o triângulo geohistórico da bacia platina. A constituição, em 1580, da “Monarquia Dualista: Espanha e Portugal, dois Reinos independentes apenas ligados pela pessoa do chefe supremo” (AMEAL, 1969, p. 413) atenuou a rivalidade entre os colonizadores portugueses e espanhóis, porém, uma outra disputa iria se inaugurar entre as duas grandes iniciativas de ocupação do espaço no continente:  a catequese jesuíta nas reduções indígenas e o desbravamento bandeirante, os quais deixariam marcas indeléveis nas futuras nações que iriam surgir na região.

Ambos, o bandeirantismo e o aldeamento jesuíta, iriam dominar todo o processo de expansão e colonização do Prata ao longo de todo o  século XVII, entrando em declínio no século seguinte, até se extinguirem em função, principalmente, do fortalecimento do Estado absolutista nas metrópoles.  No sul, o núcleo criado pelos paulistas de S. Vicente mais meridional foi Laguna (1676), coincidente à interseção do meridiano de Tordesilhas com o litoral. Daí partiam as expedições exploratórias à busca de metais preciosos e de caça ao índio. No centro do grande triângulo geohistórico  balizado por S. Vicente, Assunção e Buenos Aires, a região  banhada pelos rios Paraguai, Paraná e Uruguai, que hoje engloba o sul do Paraguai, as províncias argentinas de Corrientes e Entre-Rios, o estado do Rio Grande do Sul, o Uruguai e o estuário do Prata seria palco, a partir do final do século XVII, da maior disputa territorial das Américas, envolvendo diferentes projetos de poder territorial que se chocaram até meados do século XIX, não faltando a interveniência de potências estranhas à região.

  • A GUERRA GUARANÍTICA

Como foi exposto, os grandes competidores pelo espaço na região platina foram os bandeirantes e jesuítas, com objetivos e dinâmicas muito distintos. Os bandeirantes, à época conhecidos por mamelucos, devido à sua índole guerreira, a exemplo dos descendentes dos turcos que dominaram o Egito, buscavam riquezas minerais no vasto interior e, na falta destas, escudados nas justificativas de “guerra justa“ exaradas pelas câmaras municipais, capturavam e vendiam índios como escravos para a lavoura. Os jesuítas, vinculados à milícia do Papa, fundada por S. Inácio de Loyola, na era da contrarreforma, tinham forte apoio das monarquias ibéricas, decididamente católicas, que os utilizaram na América do Sul como eficazes instrumentos de cooptação dos indígenas. Porém, enquanto na América portuguesa a catequese jesuíta dos indígenas resultou em aldeamentos pacíficos espalhados pelo interior, sem conotação territorial, que buscavam proteger os silvícolas dos colonizadores, nos domínios espanhóis no Prata a catequese dos índios caçados pelos bandeirantes cedo caracterizou um propósito territorial e militar, esta última conotação vinculada aos interesses também militares da administração espanhola. Nas décadas seguintes à criação das Missões, os comandantes espanhóis puderam dispor de expressivos contingentes de índios enquadrados e treinados pelos jesuítas.

De toda forma, pela via portuguesa ou espanhola, os jesuítas encetaram no início do século XVII a ocupação da região. O zelo dos jesuítas motivou “o primeiro contato dos missionários portugueses com o indígena no litoral gaúcho, antes que o Padre Roque Gonzales de Santa Cruz fundasse S. Nicolau na margem esquerda do Uruguai em 1626” (GUILHERMINO, 1969, p. 26). Embora se apresentem algumas diferenças entre os registros de datas e qual seria a primeira redução jesuítica, é consensual que o início do século XVII foi o marco temporal da ocupação territorial do Prata, isto é, um processo sistemático orientado para além da fundação de núcleos populacionais esparsos.

Como seria de esperar, a fundação da Colônia do Sacramento em 1680 motivou violenta reação do governo de Buenos Aires, que “reuniu forças, fazendo inclusive baixar muitos índios, cavalhada e mantimento das missões do Paraguai“ (VARNHAGEN, 1948, p. 238) para assaltá-la e arrasá-la, em 7 de agosto daquele mesmo ano. Colônia foi, no entanto, devolvida aos portugueses em 1683, por força de tratado firmado em 7 de maio de 1681, encetando um período de paz e prosperidade que iria durar até 1705. “Anos houve em que a Colônia do Sacramento exportou 500.000 couros, a maioria por Lisboa “(ALMEIDA, 1968, p. 30).  Por outro lado, durante esse período, “em 1687, é reconstituído o povo de S. Nicolau e logo depois, S. Miguel, S. Luiz Gonzaga, S. Borja, S. Lourenço, S. João Batista, e S. Anjo, êste já em 1703“ (CIDADE, 1966, p. 11).

No final do século XVII a colonização da região ainda ocorria de forma pontual, exceto no território das Missões, dos dois lados do Rio Uruguai. Os jesuítas e indígenas retornaram à margem oriental do rio, dando início ao período de maior atividade e prosperidade dessas reduções jesuíticas. Entretanto, fora da área das reduções jesuíticas, existia uma grande quantidade de gado proveniente da primeira dissolução das missões em meados do século, quase que uma riqueza natural, que motivaria a exploração e depois a ocupação da região. “Do rio Camaquã para o sul, as famosas vacarias do mar comportavam-se como um imenso imã” (CIDADE, 1966, p. 24). Em suma, já existiam bons motivos para colonização portuguesa do Sul: 

…exploração de couraria nas Vacarias do Pinhal e do Mar; contrabando da prata do Potosi por intermédio da Colônia do Sacramento; comércio com Buenos Aires; resgate de índios; exploração aurífera e expansão do latifúndio. (GUILHERMINO, 1969, p. 47)

No alto Uruguai, os jesuítas espanhóis transpuseram o rio e fundaram as Missões Orientais, fazendo surgir aí o outro polo de atrito na região, além da já citada Colônia do Sacramento. Destruídas em meados do século XVII pelos bandeirantes, essas reduções jesuíticas foram restabelecidas antes do final do século e prosperaram ao ponto de suscitar um projeto jesuítico-indigenista autônomo com considerável extensão territorial dos dois lados do Rio Uruguai, uma ideia que perpassaria gerações, gerando mais de uma guerra.

Restava vazio e de posse indefinida o extenso território que, entre a faixa litorânea dominada pelos portugueses em Santa Catarina, o estuário do Prata controlado por Buenos Aires e as Missões jesuíticas sob administração espanhola, estendia-se das margens do Rio da Prata até os contrafortes da Serra Geral, ao norte do Rio Jacuí, balizado a oeste pelo Rio Uruguai e a leste pelo Atlântico.    

Em 1703, ou seja, 23 anos após a fundação da Colônia do Sacramento (1680), o litoral rio-grandense jazia ainda totalmente despovoado. O Roteiro de Domingos da Filgueira é uma prova disto: não menciona uma só povoação que estivesse situada entre a Lagoa de Castilhos e a Vila de Laguna. (GUILHERMINO, 1969, p. 55)

A Colônia do Sacramento, a despeito dos lucros que gerava, já se afigurava, nos primeiros anos do século XVIII, como uma situação territorial precária, e a expedição que Domingos da Filgueira realizou em 1703, entre Colônia e Laguna, aferindo setenta dias de marcha a pé, denota um crescente interesse português pelas terras e litoral situados entre as duas localidades. Além de não ter sido à época a única exploração da região, visões que advieram de incursões semelhantes foram decisivas para a ocupação de pontos chave no território já em aberta disputa.

Instado pelo governador da Capitania de São Paulo, em 1725, Francisco de Brito enviou uma expedição de trinta e um homens, comandados pelo seu genro, para explorar as vacarias e estabelecer o caminho que as ligasse aos campos de Curitiba, por sua vez, já articulados a São Paulo.  “Historicamente, as primeiras tropas de cavalos e muares chucros dos quais, depois de amansados, surgiram tropas carregadas, entraram em São Paulo e Minas, vindas do atual Uruguai, em 1733.“ (ALMEIDA, 1968, p. 8). Era o início do tropeirismo, o processo que substituiria o bandeirismo no desbravamento do interior do Brasil.

Pouco tempo depois, os dois encadeamentos históricos – militar e sócio-econômico – iriam se mesclar num episódio vital para a construção da fronteira sul. Em 19 de fevereiro de 1735, na mesma ocasião em que os espanhóis assediavam a Colônia do Sacramento, o Brigadeiro Silva Pais desembarcou na margem sul do canal da Barra do Rio Grande, onde o esperava – já incumbido pelo General Gomes Freire de Andrade, Governador da Repartição do Sul, de prestar-lhe apoio com homens e  gado – Cristóvão Pereira de Abreu, contratador de couros, que dois anos depois, em janeiro de 1737, no ”que pode ter sido o primeiro documento redigido no Rio Grande” (GUILHERMINO, 1969, p.94) faria, em carta dirigida a Gomes Freire, a primeira menção ao limite no Chuí.

“…..com a melhor providencia que era possível, no caso que o inimigo me buscasse e [ coloquei] uma guarda de 12 homens avançada adonde chamam Chuí adonde todos os dias saem espias até Castilhos (Ibid.)

Também em carta, Silva Pais logo enxergou o papel decisivo do Presídio de Jesus Maria e José que foi levantado na margem sul do canal da Barra do Rio Grande: “E estou tão firme que Rio Grande é tanto melhor para se conservar que Montevideo, e ainda, a Colônia” (FORTES, 1980, p.61). Com efeito, “a expedição comandada pelo Brigadeiro José de Silva Pais é o lance decisivo de um longo processo de ocupação do Extremo- sul brasileiro” (GUILHERMINO, 1969, p. 98). “Designado Governador Militar de Santa Catarina, em 1739,“ (MACEDO, 1998, p. 172) Silva Pais empreendeu uma série de atividades administrativas e militares, pois “a ocupação de Rio Grande exigia que se fortificasse a ilha de Santa Catarina para assegurar as comunicações com Santos e Rio de Janeiro “(Ibid.). Com a fundação do Presídio de Jesus, Maria e José se iniciara o processo de fronteira “que deu a fisionomia histórica do Rio Grande” (SILVA, 1930, p. 9).

Aos vaqueiros de Cristóvão Pereira se somavam agora os soldados do Regimento de Dragões do Rio Grande, criado por Silva Pais, que não se descuidara de fundar, na margem esquerda do rio Jacuí, o Fortim de Santo Amaro (WRIGHT, 1999, p. 298), protegendo, face às Missões, o ponto de partida da ligação com São Paulo.

Os grandes tratados de limites na América ibérica do século XVIII, Madri (1750) e Santo Ildefonso (1777), não solucionaram a questão crucial para a paz no Sul – a delimitação consensual dos territórios coloniais – porém estabeleceram, daí por diante, um novo princípio, realista, do estabelecimento de limites acordados nas chancelarias e demarcados no terreno. Se o primeiro desses tratados espelhava um ambiente de boa vontade entre as cortes e o segundo a imposição do momentaneamente mais forte, ambos continham a ideia da delimitação pela expressão de uma realidade, não importa se de força ou de ocupação. Esses tratados podem não ter resolvido definitivamente a questão de limites, porém fizeram infletir definitivamente a natureza dos conflitos na região: agora a posse de vastos territórios, não mais o domínio de pontos-chave ou os choques de interesses exploratórios. Porém, no contexto dessa nova fase da “estratégia de chancelarias” (AMEAL), os portugueses alcançaram uma grande vantagem ao construírem “uma base cartográfica sobre a qual se assentaram as negociações em torno do Tratado [de Madri]” (COSTA, 2008, p. 131). De todas as produções cartográficas do período, a mais importante foi, sem dúvida, o Mapa das Cortes (1749), “elaborado em Portugal […] sob a orientação de Alexandre de Gusmão” (Ibid.). Uma nova dimensão da disputa se abrira: a do conhecimento, e Portugal saíra na frente.

De uma maneira mais palpável do que os arranjos diplomáticos, distintos impulsos da ocupação da região pelos portugueses ocorreram em meados do século XVIII. Os primeiros registros da presença dos açorianos no Rio Grande – “em 1750 já se realizam aqui batizados de filhos de ilhéus, conforme documentos revelados por Aurélio Porto” (GUILHERMINO, 1969, p. 140) – coincidem nesse ano, com a data aproximada “para a feira de Sorocaba: iniciada com negócios isolados crescendo pouco a pouco, no primeiro quartel do século XVIII, é de 1750 em diante que o comércio de animais se consolida na região“ (ALMEIDA, 1968, p. 42). Acrescentaram-se à paisagem humana do Rio Grande, até então majoritariamente formada pelo elemento autóctone guarani, dois grupos bem distintos, nas suas características étnicas e psicológicas: os açorianos e os paulistas. Entretanto, dada a dinâmica da formação do Rio Grande condicionada pela fronteira, plena de lutas e interações, dos dois, seriam os últimos que predominariam no futuro caráter do gaúcho: “No Rio Grande, a fixação do espírito de raça e nacionalidade é obra menos do português do que do paulistano“. (SILVA, 1930, p. 51).

Os portugueses haviam avançado até a Barra do Rio Grande, que fortificaram. Os jesuítas que haviam retornado às Missões Orientais em consequência do Tratado Provisional de 1681[mantinham as reduções nas Missões Orientais e estendiam-nas cada vez mais na direção do litoral. Os paulistas e lagunenses varavam as vacarias dos Pinhais e do Mar, fazendo engrossar as remessas de gado pelo caminho que havia sido estabelecido desde 1733. E o contencioso de Sacramento, a colônia portuguesa defronte a Buenos Aires, persistia.

O Tratado de Madri, assinado em 13 de janeiro de 1750, nas palavras de Capistrano de Abreu, citado por Hélio Viana, baseava-se nos ”limites naturais, tomando por balizas as passagens mais conhecidas, para que em tempo nenhum se confundam, nem dêm ocasiões a disputas” (VIANA, 1949, p. 98). Talvez mais importante para o futuro das nações sul-americanas, o tratado exprimia o princípio do Uti Possidetis.

Claro e orientado por diretrizes sólidas, o Tratado de Madri esbarraria em grandes dificuldades para a sua implementação. Além das críticas recebidas nas próprias metrópoles, a enormidade da tarefa demarcatória, compartilhada com os espanhóis, de uma linha que se estendia da Amazônia ao Rio Grande, agravada pela precariedade dos meios de transporte e levantamento da época, iria se somar, no Sul, à resistência armada dos guaranis aldeados à desocupação das Missões Orientais, o que iria provocar a primeira guerra na região, ignitora das que se seguiram naquele século.

A rebelião dos guaranis nas Missões teve consequências imediatas nas terras sob domínio português: a fundação, em 1752, do forte Jesus, Maria e José, às margens do Jacuí onde este recebe o rio Pardo, origem da fronteira do mesmo nome que se sustentaria pelas armas, naquele momento diante dos indígenas e, mais tarde, contendo, os espanhóis.  No início desse ano, os chefes das comissões portuguesa e espanhola, o general Gomes Freire de Andrade, Conde de Bobadela e governador da Repartição do Sul, e o general Gaspar de Munive León Garabito Tello y Espinosa, Marquês de Valdelírios, respectivamente, chegaram à região e, “depois de se avistarem em Castilhos Grandes, tiveram a primeira conferência a 9 de outubro“ (VARHAGEN, 1948,p. 132). A demarcação teve início, porém, logo foi detida pelos índios rebelados nas proximidades de Bagé. Falharam as ofertas de dinheiro e de isenção de impostos feitas pelo Marquês de Valdelírios às reduções para que se mudassem para a margem ocidental do Uruguai, bem como a proclamação do governador de Buenos Aires, D. José Andonaegui no mesmo sentido.

Um primeiro plano de campanha foi então acordado entre portugueses e espanhóis – a ser desencadeado contra os rebeldes se estes não deixassem a região até 15 de agosto de 1753 – que previa um movimento coordenado de forças espanholas pela campanha e pelo Uruguai para ocupar São Borja, e de forças lusas, sob Gomes Freire, para ocupar Santo Ângelo. As forças espanholas não conseguiram subir o Uruguai e Gomes Freire se viu obrigado a fazer um armistício, em 14 de novembro, com os índios rebelados. Diante do impasse, as tropas espanholas e portuguesas se recolheram, enquanto as cortes, informadas do que se passava, reuniam meios para fazer valer o acordo.

No início de 1756, as operações militares foram reiniciadas, com uma foça combinada luso-espanhola de aproximadamente 3.000 homens e vinte peças de artilharia, a qual, partindo das cabeceiras do Rio Negro, marchou na direção noroeste, rumo às Missões. No dia 7 de fevereiro ocorreu um combate entre um destacamento dessa força e os indígenas, no qual morreu o cacique Sepé Tiaraju. Três dias depois, a 10 de fevereiro, feriu-se às margens do Vacacaí a batalha de Caiboté, em que os guaranis foram completamente derrotados. Em meados do ano estavam submetidas todas as reduções das Missões Orientais. As tropas portuguesas se recolheram a Rio Pardo e cerca de três mil guaranis optaram por seguir os portugueses. A implementação do tratado no Sul poderia ter se encerrado a essa altura, não fossem os desentendimentos entre as partes portuguesa e espanhola a respeito do recebimento do território. Substituíra D. José Andonaegui no governo de Buenos Aires D. Pedro de Ceballos, o qual entrou em desacordo com o Marquês de Valdelírios e em franca oposição a Gomes Freire, um fato que acarretaria graves consequências. Em 1759, Gomes Freire, sem conseguir chegar a um acordo com os espanhóis acerca da conclusão da retirada dos guaranis, retornou à sua sede de governo, no Rio de Janeiro, de onde estava afastado há sete anos.

  • A GUERRA DE 1763

A guerra que estalou entre Espanha e Portugal, justamente quando a Guerra dos Sete Anos (1756-1763) se encaminhava para o seu final, teve como pretexto, mais uma vez, um pacto da família Bourbon que governava França Espanha e Nápoles, antagônico à Inglaterra, histórica aliada de Portugal. Antes da invasão de Portugal pela Espanha, a 25 de agosto de 1762 (AMEAL, 1969, p. 692), D. Pedro Ceballos já intimava o Conde Bobadela, agora Vice-Rei do Brasil,  à guerra, em carta de 15 de julho de 1762 (VARHAGEN, 1948, p. 181), e já preparava a investida contra Colônia do Sacramento – que conquistou praticamente sem luta a 29 de outubro de 1762 (restituída a Portugal no ano anterior) – bem como a marcha pelo território português que culminou com a conquista de Rio Grande, em 26 de maio de 1763. Terminada a guerra, a política de força adotada pelos espanhóis prosseguiu na desobediência ao estipulado pelo Tratado de Paris (10 de fevereiro de 1763) que pôs fim ao conflito.

Consciente da irrelevância da Colônia de Sacramento no jogo poíitico-militar em curso, Ceballos anuiu com a sua devolução aos portugueses, porém não desocupou Rio Grande e nem o território circunjacente que invadira, apoiado nessa atitude pela metrópole espanhola.  Diante dos protestos portugueses à violação aberta dos termos do tratado, “o marquês de Grimaldi […] sem buscar plausíveis subterfúgios […], respondeu que todos esses terrenos eram de direito da Espanha“ (VANHARGEN, 1948, p. 187).

Estavam criadas as condições para a longa e difícil guerra que, disfarçada por uma paz cínica entre as metrópoles, prosseguiu no Sul até 1777 e, em cujo contexto, a despeito do seu grande sucesso na conquista das margens do canal de Rio Grande, os espanhóis fracassaram, por não conseguirem tomar Rio Pardo em 1774, o que, se alcançado, combinado à posse de Rio Grande, lhes asseguraria o domínio de todo continente de São Pedro, inviabilizando a reação portuguesa que se seguiu.

Dois anos depois da resposta de Grimaldi ao governo português, em 6 de junho de 1767, num bem sucedido ataque partido do forte de São Caetano que os portugueses haviam levantado no istmo da Lagoa dos Patos, o Coronel José Marcelino conquistou a posição espanhola ao norte do canal de Rio Grande.  Antecedendo essa ação, os portugueses haviam levantado “outro forte no Rio Taquari, em posição que defendia o povoado agrícola de São José do Tebicuari, pouco antes organizado com alguns casais açorianos fugidos da vila do Rio Grande” (MACEDO, 1999, p. 178).  A expansão militar espanhola fora contida, não somente através de contramedidas militares, mas também pela intensificação da colonização.

“A larga faixa de terra entre os rios Jacuí e Camaquã continuou a se tornar cada vez mais portuguesa. Os espanhóis viam esse povoamento como infiltração irregular e procuravam, em contrapartida, patentear a posse dessa mesma região por atividades militares” (Ibid. , p. 178).

A política de força tocada de Buenos Aires desde D. Pedro Ceballos, substituído por D. Francisco Bucarely y Ursua, mais moderado, foi retomada com o novo governador D. Juan José de Vertiz y Salcedo que exigiu a evacuação das posições portuguesas no rio Camaquã e ao norte da Barra do Rio Grande. Em novembro de 1773, Vertiz y Salcedo marchou de Montevidéu na direção de Bagé, onde recebeu reforços espanhóis provenientes da praça de Rio Grande e erigiu uma fortificação, Santa Tecla. Prosseguiu para o norte, atingindo um ponto próximo de Rio Pardo, à espera de reforços correntinos que vinham sob o comando de D. Francisco Bruno de Zabala, com os quais pretendia conquistar  a praça forte. As baixas que Rafael Pinto Bandeira impôs a esse reforço de Zabala  no combate de Tabatingaí, a 14 de janeiro de 1774 (VARHAGEN, 1948, p. 192), e a demonstração de artilharia que fez a fortaleza de Rio Pardo desanimaram Vertiz y Salcedo de acometer a fortificação, levando-o a retroceder a Rio Grande e daí a Montevidéu.

Madri insistia na conquista das terras ao norte da Barra do Rio Grande e instruiu Vertzi y Salcedo a retomar pelas armas o que fora perdido em 1767 (Ibid.). No entanto, Lisboa encaminhou um reforço militar expressivo para a província (desde 1761) do Rio Grande, constituído por tropas de Portugal (os regimentos de Moura, de Bragança e do Porto), que se juntou à Legião de São Paulo, à Legião de Santos e à Legião do Rio Grande que atuavam na fronteira de Rio Pardo, na defesa de Porto Alegre e na campanha, respectivamente. Nove regimentos foram organizados e aprestados no Rio de Janeiro, em condições de seguir para a frente de combate. Pela primeira vez, Portugal empreendia uma completa mobilização militar para defender seus territórios no Sul.

A contraofensiva geral portuguesa começou em 31 de outubro de 1775, com a destruição, por uma força de duzentos homens comandada por Rafael Pinto Bandeira, do entrincheiramento espanhol de São Martinho, situado no caminho da campanha para as Missões Orientais, no divisor de águas do Ibicuí e Jacuí.  Em seguida, a 24 de março de 1776, o forte de Santa Tecla, levantado por Vertiz y Salcedo três anos antes nas imediações de Bagé, se rendeu ao mesmo Rafael Pinto Bandeira, que não perdeu tempo em demoli-lo.  A 1o de abril, o General Böhn transpunha de surpresa o canal de Rio Grande, conquistando a vila e os fortes que a cercavam. Estava concluída a reconquista do Rio Grande, e nem mesmo a expedição de Ceballos a Santa Catarina e a consumação do fim do Colônia do Sacramento iriam alterar o significado desse acontecimento decisivo para a incorporação definitiva do continente de São Pedro ao Brasil.

O encerramento das hostilidades veio com o Tratado de Santo Ildefonso, firmado em 1o de outubro de 1777. O que não havia sido concluído da implementação do Tratado de Madri, a entrega das Missões Orientais a Portugal, era revertido a favor da Espanha. O tratado apenas fixava uma situação de fato e, segundo essa perspectiva, apesar de abandonar parte dos limites naturais em que se apoiava o Tratado de Madri, pela primeira vez, existia um limite oficial entre os domínios portugueses e espanhóis que se apoiava numa situação real no terreno, essencialmente militar.

Fora grande o esforço dos governadores de Buenos Aires, a partir de 1763, em expulsar os portugueses do continente de São Pedro, mas o intento espanhol não só falhara como, por seu viés invasor, provocara uma reação que consolidou a posse portuguesa do território, por intermédio de fortificações, da instalação de corpos de tropas que vieram de Portugal e de outras regiões do Brasil para a região e, principalmente, pelas ondas sucessivas de ocupação da terra, cujas “primeiras articulações do Rio Grande foram as estâncias.“ (SILVA, 1930, p. 76). “Surgem então a estância e o estancieiro, êste em regra um soldado miliciano que há de encher o cenário militar de uma nova era.“ (CIDADE, 1966, p. 107). A província iria viver um período de paz que estimularia consideravelmente a atividade econômica característica da região.

  • A GUERRA DE 1801

Pressionada pela França, a Espanha declarou guerra a Portugal em 27 de fevereiro de 1801, “e a 20 de maio irrompiam as suas tropas por Olivença. Nenhum dos dois governos, é certo, fazia de bôa vontade essa guerra que aproveitava a Bonaparte “(CALMON, 1947, p. 14). Dessa vez, Portugal tomou a ofensiva, confirmando a mudança de atitude de Lisboa desde 1774 face aos castelhanos de Buenos Aires. A campanha militar, iniciada em agosto de 1801, duraria quatro meses e se desenvolveu em duas frentes: ao sul, na linha do Jaguarão e a oeste, nas Missões. No sul, as forças sob o comando do Coronel Manuel Marques de Sousa transpuseram o rio Jaguarão e conquistaram, a 30 de outubro, Cerro Largo, demolindo a fortificação ali existente, recuando em seguida para a linha do Jaguarão que sustentaram diante da investida do Vice-Rei de Buenos Aires, o Marquês de Sobremonte, até a notícia da celebração da paz, a 17 de dezembro.  A oeste, da fronteira de Rio Pardo, o Tenente-Coronel José Patrício José Correia da Câmara rumou para o sul, expelindo as forças espanholas das cabeceiras do Ibicuí, tendo seu flanco direito coberto pelas ações dos milicianos de Manuel dos Santos Pedroso, estancieiro, e José Borges do Canto, ex-soldado do Regimento de Dragões do Rio Pardo. Ambos lideraram sucessivos e afortunados golpes de mão contra as forças espanholas nas Missões, terminando por conquistá-las, mantendo também a linha do rio Uruguai, no que pode ser considerado uma das mais surpreendentes e decisivas campanhas militares.

Os combates deixaram em mãos dos luso-brasileiros todas as Missões Orientais, os campos entre o Ibicuí e o Quaraí e entre o Piratini e o Jaguarão, mantendo ao término das hostilidades a linha do Uruguai e a do Jaguarão. Os protestos espanhóis não se fizeram por esperar: “o Marquês de Sobremonte, […], insistia na devolução do território conquistado, notadamente o das Missões.” (CIDADE, 1948, p. 114). No entanto, ao contrário dos conflitos anteriores, a conclusão dos combates da guerra de 1801 definiu os limites entre os domínios portugueses e espanhóis no Sul, devido à ausência de qualquer cláusula de retorno ao status quo ante no Tratado de Badajoz (12 de junho de 1801).

O período colonial na América ibérica se encaminhava também para seu ocaso, por vias muito distintas, particularmente nos casos do Brasil, que em breve receberia a Corte de Lisboa transferida às pressas para o Rio de Janeiro, e das províncias espanholas no Prata, que entrariam em um período extremamente conturbado de suas evoluções políticas. Na área de conflito no Prata que se desenrolara por séculos, as terras entre o rio Uruguai e o Atlântico haviam sido incorporadas ao Brasil, dos pontos de vista econômico, social e político, com uma fronteira militarmente conquistada ao sul.

Restava sustentá-la e fazê-la reconhecida. Havia, portanto, que se a construir.

  • A GUERRA DE 1811

Entre julho de 1811 e junho de 1812 aconteceu um conflito armado na Banda Oriental do Rio da Prata e ao longo das margens do Rio Uruguai, envolvendo o Brasil, Buenos Aires, a administração espanhola de Montevidéu e os caudilhos entrerrianos e correntinos, tudo permeado pelos interesses da Inglaterra na região. Esses traços estariam presentes na Guerra da Cisplatina, pouco mais de uma década depois.

Após a guerra de 1801, a região da fronteira da Capitania de São Pedro do Sul sossegara. Continuavam a se expandir as estâncias e a produção agropecuária da província. Southey apontava que “em 1814 daqui (Rio Grande) [partiram] 323 navios pela maior parte carregados de trigo, couro, carne seca e queijos” (p.469), sem falar do lucrativo negócio de mulas que em sua maioria provinham do Rio Grande e com as quais “se fazia todo o comércio interior” (Ibid., p.463).  Essa produção e comércio decorria da ocupação e exploração da terra na capitania, cujo panorama socioeconômico pode ser apreciado nas palavras do mesmo autor.

Em princípios do século décimo nono contavam-se na parte pastoril desta capitania 539 proprietários, com suas estâncias que lhes haviam sido assinadas nos termos da lei; eram ou fazendeiros, criadores em grande, ou lavradores, que apenas criavam o gado preciso para o seu uso e consumo. Variavam em extensão de duas ou dez léguas quadradas as estâncias, havendo-as até que excediam esta área enorme. Para uma manada de quatro ou cinco mil cabeças, carecia-se de uma planície de doze milhas, não sendo bons em geral os pastos, seis homens pelo menos, e com cavalos (p. 470).

Os acontecimentos na Europa em 1807 e 1808 repercutiriam diretamente no Prata. Com o mundo em guerra, a Corte recém-instalada no Rio de Janeiro temia que o conflito se estendesse às Américas e procurou tomar medidas antecipatórias. Uma semana depois de chegar ao Brasil, D. João fizera seu ministro de negócios estrangeiros, D. Rodrigo Coutinho, Conde Linhares (1755-1812), expedir, em 13 de março de 1808, uma carta ao Vice-Rei do Prata, D. Santiago de Liniers, instando-o a se colocar sob sua proteção. Ao norte, D. João teve menos preocupações com a persuasão: determinou a invasão da Guiana Francesa, coroada de êxito em 12 de janeiro de 1809. Pouco tempo depois, em maio de 1808, a prisão de Fernando VII de Espanha por Napoleão gerou a crise na administração colonial espanhola que desestabilizaria de vez a região.

Os rumores de uma monarquia em Buenos Aires alimentados pela difusão por Liniers dos documentos enviados pela Corte do Rio de Janeiro geraram inquietação e desconfianças que haveriam de contribuir para os sentimentos autonomistas. Em 1809, Liniers é substituído por Baltasar Hidalgo de Cisneros (1756-1829) (IRAZUSTA, 1999, p. 83) no Vice-Reinado do Prata. Mas o processo já estava em marcha. Em 25 de maio de 1810, Cisneros é deposto e é instalada a 1a Junta Governativa em Buenos Aires, a qual alegava fidelidade à Junta de Sevilha, que por sua vez, constituíra, durante aquele ano, o Supremo Conselho da Regência (Ibid.).

A partir desse momento vão se precipitar os acontecimentos que culminaram no conflito de 1811. Já em 4 de agosto de de 1810, apenas 3 meses após a constituição do novo governo em Buenos Aires, D. Diogo de Sousa (1755-1829), governador da província de São Pedro do Sul, envia uma carta a D. Tomás de Rocamora (1740-1819), governador da província de Entre-Rios, na qual denuncia violações do território sob seu governo e reitera a linha de fronteira. Dessa correspondência e dos documentos por ela referidos se depreende que a Junta de Buenos Aires procurava criar uma nova situação de limites entre a Banda Oriental e a província de São Pedro do Sul, levando a linde para a linha do Ibicuí, mediante incursões militares justificadas numa hipotética convenção de limites.

As violações do território do Brasil pelas tropas correntinas e entrerrianas, a entrada de tropas portenhas na campanha oriental e o pedido formulado por D. Elio levaram a Corte do Rio de Janeiro a intervir na Banda Oriental, empregando o Exército de Observação que D. Diogo concentrara na fronteira.

No mesmo dia, 7 de junho, em que o Governador das Missões, no Rio Grande de São Pedro do Sul, o Coronel Francisco das Chagas Santos, escrevia de São Borja “minucioso ofício” a D. Diogo sobre a missão do Tenente José de Abreu (VARNHAGEN, 1948, p. 114) em Assunção, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, o Conde Linhares, Ministro  dos Estrangeiros e da Guerra de D. João, escrevia ao representante espanhol na Corte do Rio de Janeiro, Marquês de Casa Irujo (1763-1824), informando da intervenção que seria feita na Banda Oriental. Além de garantir que ela seria passageira, sem intenções de usurpação da soberania espanhola, D. Rodrigo sugeria a Casa Irujo que D. Elio oferecesse uma anistia “a fim de se evitar que se perpetuassem os ódios e animosidades que podiam fazer durar o espírito de revolta que ‘se deseja extinguir’ ” (Ibid.).

A missão de D. Diogo de Sousa era complexa. Do ponto de vista militar, deveria manter a linha de fronteira, das Missões ao Chuí, diante das incursões platinas (que tinham ocorrido e voltariam a acontecer), expulsar as tropas de Buenos Aires da Banda Oriental e se manter atento aos acontecimentos no Paraguai. Do ponto de vista político deveria assegurar a Elio e a Buenos Aires que a intervenção não era uma ocupação, mas sim uma pacificação que interessava ao sossego da fronteira do Brasil. O Exército, agora de Pacificação, sob o comando de D. Diogo somava aproximadamente quatro mil homens, dividido em quatro grupamentos dispostos ao longo da fronteira. Os dois maiores estavam reunidos em Bagé, sob o comando de D. Diogo, e no acampamento de S. Diogo, próximo à atual Santana do Livramento, sob o comando do General Curado. À esquerda de Curado, cobrindo a fronteira do Quaraí, a oeste, havia se desdobrado o grupamento sob o comando do Tenente-Coronel Pedroso. Na extremidade oposta da fronteira, a leste, no trecho entre o Serrito (Jaguarão) e o Oceano Atlântico, patrulhas vigiavam a fronteira do Chuí. Cobrindo a fronteira das Missões, com comando sediado em São Borja, estava o destacamento sob o comando do Tenente-Coronel Francisco das Chagas Santos (1763-1840), governador das Missões.

Composto por tropas brasileiras do Rio Grande, Santa Catarina e São Paulo, das três armas, o Exército de Observação tinha na Legião de Tropas Ligeiras de São Paulo[2] a sua principal força, a qual, segundo as descrições dos combates, provavelmente foi empregada de maneira fracionada, combinada a outros destacamentos.

O inimigo eram as tropas sob as ordens de Buenos Aires, sob o comando de Rondeau que cercavam Montevidéu, forças milicianas de Artigas, dos caudilhos entrerrianos e correntinos e  índios, charruas e minuanos, estas últimas consideradas as mais combativas por D. Diogo durante as campanhas que se seguiriam.  Além de cercarem Montevidéu e ocuparem Colônia, as forças de Buenos Aires mantinham Paysandu e outros pontos na Banda Oriental, concentrando-se também na margem direita do Uruguai, de onde lançariam ataques às forças brasileiras na outra margem.

A primeira campanha militar dessa guerra durou de julho a outubro de 1811. A principal força do Exército de Pacificação, sob o comando de D. Diogo de Sousa se deslocou de Bagé para Serro Largo e pela Lagoa Mirim, convergindo em Santa Tereza, apossando-se da fortificação e daí marchando para Maldonado, ocupada em 12 de outubro. Ao mesmo tempo, as forças de Pedroso, incursionaram no outro lado do Uruguai, dando combate às guerrilhas correntinas e entrerrianas que hostilizavam a Capitania e as forças brasileiras, e em seguida marcharam para o sul, pela margem do rio. Em 1o de setembro, Paysandu foi capturada num golpe de mão comandado pelo Tenente Bento Manoel Ribeiro (1783-1855).  A campanha nessa parte do teatro de operações foi encerrada com as incursões das forças brasileiras na margem direita do Uruguai, em Arroio de la China, Mandirovi e Curuzu Cuatiá, em setembro e outubro desse ano.

Embora as tropas de Buenos Aires que cercavam Montevidéu tenham se retirado, as guerrilhas artiguistas, entrerrianas e correntinas continuaram a hostilizar as forças brasileiras sob o comando do Tenente-Coronel Pedroso que estavam dispostas ao longo da margem esquerda do Uruguai, particularmente na região de Quaraí, apesar dos protestos de D. Diogo dirigidos ao governo de Buenos Aires. Em 22 de dezembro de 1811, feriu-se um combate de monta em Arapeí, quando cerca de 800 milicianos atacaram um pequeno destacamento de Pedroso, sendo repelidos.

Em 2 de janeiro de 1812, D. Diogo de Sousa enviou de seu quartel-general em Maldonado uma carta à Junta Provisional de Buenos Aires, na qual, depois de denunciar os ataques de Artigas, exigir uma posição de Buenos Aires em relação ao caudilho e de criticar no armistício de outubro  a omissão das “justas razões que o Príncipe Regente meo Soberano teve para mandar  as suas tropas a este território”, condicionava a sua retirada da Banda Oriental à cessação das hostilidades contra as suas tropas e ao compromisso formal de respeito à fronteira de 1801. A carta, um ultimatum, deveria ser respondida no prazo de três dias, prazo pelo qual aguardaria seu portador, o  Capitão de Cavalaria Ligeira Manoel Marques de Sousa (1780-1824).

Diante da não satisfação de suas demandas e da continuação das hostilidades, como ocorrido em Capilla Nueva (janeiro de 1812), perto de Mercedes, e ao longo da linha do Rio Uruguai, das Missões a Paysandu, D. Diogo de Sousa iniciaria, em abril de 1812, a segunda campanha militar, deslocando-se de Maldonado com o grosso de sua força, na direção noroeste, rumo à margem esquerda do Uruguai, e enviando reforços sob o comando dos Coronéis Thomaz da Costa e Menna Barreto para o destacamento de Pedroso, que se encontrava mais exposto aos ataques de além-Uruguai.

A coluna de D.  Diogo iria travar os combates de Passo de Alcorta (8 de abril), Perucho Verna e Arroio da China, enquanto as forças de Pedroso, agora reforçadas, descendo mais uma vez a margem esquerda do Uruguai, bateriam os milicianos platinos em  Tapobi-Grande (12 de abril), simultaneamente a outras forças brasileiras que fariam o mesmo em Cordovez, e Daiman (11 de abril).  Desde maio as tropas brasileiras ocupavam a linha do Uruguai, não havendo mais nenhuma força inimiga na Banda Oriental ou na Província do Rio Grande. Aparentemente, a intervenção estava encerrada e, longe do que algumas interpretações a qualificam, não foi “um passeio militar”.  D. Diogo estima que as forças luso-brasileiras tenham sofrido 80 baixas fatais, enquanto o inimigo cerca de 2.000, ao longo de quase um ano de campanha.

  • A GUERRA DE 1816

       O pano de fundo da guerra de 1816 não era muito diferente daquele de 1811: a Banda Oriental fugindo à órbita de Buenos Aires, a Corte do Rio buscando o reconhecimento da fronteira e a caudilhagem platina perseguindo seus objetivos de autonomia local.  As mudanças ficavam por conta da perda de legitimidade de Buenos Aires, a diminuição da influência inglesa junto à Corte do Rio e um aumento de importância da Espanha. Os meios e recursos dos contendores também haviam se ampliado: do lado platino, Artigas, além da Banda Oriental, contava com o apoio de várias províncias federadas, particularmente Entre-Rios e Corrientes, fronteiras à Capitania de São Pedro. Do lado luso-brasileiro, além das tropas brasileiras, já experimentadas nas campanhas anteriores, milicianos, fronteiros e as Legiões de Tropas Ligeiras, havia chegado de Portugal, em 30 de março de 1816, a Divisão de Voluntários Reais, sob o comando do General Lecor, uma tropa composta por 4360 homens das três armas, com experiência de combate da Guerra Peninsular contra as tropas de Napoleão. Praticamente anunciada desde o ano anterior, a guerra de 1816 haveria de ser longa e renhida.

As hostilidades, na verdade, nunca cessaram completamente desde o armistício de 1812. Uma paz armada sustentava a linde na Capitania de São Pedro do Sul com um dispositivo constituído pelas denominadas “guardas” e por alguma tropa em Jaguarão, Bagé, São Diogo, Alegrete e São Borja. A Legião de São Paulo, de destacada atuação nas guerras de 1763-1777 e de 1811-1812, não se afastara mais da região, um corpo de tropa das três armas, agora aumentada em seus efetivos, concentrada em Rio Pardo. Além delas, desde o final da guerra de 1763-1777 existia a Legião de Tropas Ligeiras constituída por tropas recrutadas na própria capitania. Os estancieiros, antigos combatentes das guerras de 1763-1777, 1801 e 1811, mantinham uma linha de vigilância, defendendo de armas na mão, não só a fronteira, como seus bens.

Em 1816, André Artigas fez a sua proclamação aos povos orientais das Missões, instando-os a resgatar os Sete Povos das Missões.

Exhorto á todos los Naturales de los Pueblos orientales de Misiones Andres Guacurari y Artigas (Ciudad.o) Capitan de Blandengues, y Com.te gral de la Prov.a de Misiones p.  el supremo govierno de la Liberdad á todos los Naturales de la banda oriental &.a …Por tanto atendiendo, é inteligenciado q.e las mismas, ó aun mayores razones concurren en mi p.a libertar los sietes Pueblos de esta banda del tiranico domínio del Portugues baxo el qual han estado quince años los infelices Indios gimiendo la dura esclavitud.  (…)  (REPUBLICA ORIENTAL DEL URUGUAY, 1997, p. 61)

Em setembro de 1816, antecipando-se à ação da Divisão de Voluntários Reais, Artigas invadiu a Capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul, seguindo o plano que previa a conquista dos campos ao sul do Ibicuí e a oeste do Santa Maria, bem como das Missões. Retomava-se pelas armas o contencioso territorial correspondente à diferença entre os Tratados de Madri (1750) e Santo Idelfonso (1777).  Para enfrentar o conflito, dispunha Artigas de uma força estimada em torno de 8.000 homens, dos quais a metade ele empregou na campanha de conquista das Missões e dos campos do Ibicuí.  Dispôs às margens do Quaraí um grupamento diretamente sob suas ordens, próximo à Guarda de Sant’Anna (imediações da atual Santa do Livramento) e outro 18 léguas (cerca de 100 Km) Rio Quaraí abaixo, sob o comando de Verdun (José Antonio Berdún, 1778 -1837). Outro grupamento, sob o comando de Pantaleón Sotelo ( ? – 1820), deveria cruzar o Rio Uruguai ao sul do Ibicuí para marchar pela margem esquerda do Uruguai na direção norte, rumo a São Borja, onde deveria ajudar a conquista da vila, diretamente assediada por André Artigas (1778- ?). Tendo conquistado São Borja, André Artigas deveria se dirigir sobre a fronteira de Rio Pardo. A conquista das Missões Orientais – assim denominada  pelos orientais como parte da federação em construção por Artigas – seria consolidada com a manutenção na linha do Rio Santa Maria, depois de destruídas ou expulsas as forças luso-brasileiras na região.

Contribuiu para o sucesso inicial da invasão das Missões a rebelião que os elementos artiguistas incitaram entre os índios do Regimento de Milícias de Garanhuns (Ibid., p. 140) que se passaram para o inimigo e deixaram-no transpor o Uruguai, o que levou as guardas de fronteira a recuarem e ir se abrigar em São Borja, depois cercada por André Artigas, o Andresito.

Ante o avanço de Artigas e Verdun, as guardas de fronteira e os estancieiros da região esvaziaram a região de todos os meios que pudessem cair em mãos do inimigo e recuaram, hostilizando-o. Alertado desde o mês de junho das intenções de Artigas, o Governador e Capitão-General, Marquês de Alegrete, Luís Telles da Silva Caminha e Menezes (1775-1828), fizera marchar em julho as tropas existentes na Capitania para as fronteiras ameaçadas, ditas Entre-Rios e Missões, confiando a direção das operações ao Tenente-General Joaquim Xavier Curado (1746-1830). Em Rio Pardo, Curado identificou corretamente o eixo das operações de Artigas, orientado sobre os campos do Ibicuí, e deslocou seu comando para o Passo do Rosário, onde a coberto do Rio Santa Maria, estabeleceu a primeira concentração de tropas. Antes que se completasse a mobilização e o deslocamento das tropas à sua disposição, Curado avançou seu comando para a margem direita do Ibirapuitã- Chico e dali, a 20 de setembro de 1816, lançou a ação que abriria a primeira campanha dessa guerra: o ataque à vanguarda de Artigas que estava na altura da Guarda de Sant’Anna.

A campanha dos Campos do Ibicuí durou de setembro de 1816 a janeiro de 1817 e se estendeu das cercanias da atual Santana do Livramento até São Borja. Para enfrentar os cerca de 4.000 homens de Artigas dos quatro grupamentos (Artigas, Verdún, Sotelo e Andresito) articulados ao longo dos Rios Uruguai e Quaraí, Curado dispunha de 2.000 homens aproximadamente: a infantaria e a artilharia da Legião de São Paulo; o Regimento de Dragões; 1o Regimento da Cavalaria de Milícias; 2 (dois) esquadrões do 3o Regimento de Cavalaria de Milícias; Regimento de Infantaria de Santa Catarina; dois esquadrões de cavalaria da Legião de São Paulo e dois esquadrões de voluntários do distrito de Entre Rios (Ibid., p. 127).

Curado manobrou. Fez com que a força do Brigadeiro Thomaz da Costa Corrêa Rebello e Silva, que confrontava o grupamento de Verdun ao longo do Quaraí, destacasse uma coluna constituída por 10 (dez) esquadrões de cavalaria, 1 (uma) companhia de infantaria e 2 (duas) peças de artilharia calibre 3, somando 650 homens, sob o comando de Tenente-Coronel José de Abreu, para cobrir o Rio Uruguai que Sotelo intentava passar. O pouco que restou da força de Thomaz da Costa – alguma infantaria, artilharia montada de São Paulo e 2 (duas) peças de calibre 3 – conseguiu ser acolhido no Ibirapuitã-Chico, a despeito “das diligencias que fez Verdun por encontral-o” (LARA, 1845, p. 133).  Como se vê, na constituição da força de José de Abreu foi priorizada a mobilidade. Com efeito, já no dia 21 de setembro, José de Abreu desbaratava o destacamento que Sotelo fizera passar o Uruguai, na altura da povoação de Iapejú, situada do lado correntino. Nova tentativa de Sotelo, perto da confluência com o Ibicuí, na qual o inimigo empregou barcas canhoneiras, foi frustrada também por Abreu.  Transpondo o Ibicuí, Abreu iria bater, no dia 27 outro destacamento de Sotelo que havia transposto o Uruguai nas proximidades do Rio Ytuparaí. A marcha de José de Abreu pela margem esquerda do Rio Uruguai, na qual ainda dispersou outros destacamentos de Sotelo, iria se encerrar na batalha de São Borja (3 de outubro de 1816), travada em campo aberto contra as forças de Andresito, superiores em número, compelidas então a abandonarem o cerco à vila.

No prosseguimento da campanha, o Marquês de Alegrete determinou ao Brigadeiro Chagas Santos que atacasse as localidades a leste do Rio Uruguai, as Missões Ocidentais, com a finalidade de privar André Artigas dos meios que lhe permitissem repetir a invasão da Capitania cometida no ano anterior. Essas incursões brasileiras do outro lado do Uruguai já tinham ocorrido na Guerra de 1811, e a motivação fora a mesma: atacar para prevenir a repetição de ataques anteriores. Porém, desta vez, em função dos meios, bem mais expressivos, de parte a parte, e do que estava em jogo, os combates foram mais intensos e se prolongaram até 1819, ocorrendo dos dois lados do Rio Uruguai, na maioria das vezes, do seu lado ocidental.

A primeira etapa dessas hostilidades é a incursão de Chagas Santos na margem ocidental entre janeiro e março de 1817.   Em 17 de janeiro, à frente de 550 homens e 5 peças de artilharia, ele transpõe o Rio Uruguai na altura de Itaqui, com o destacamento do Tenente Luiz Carvalho, e em frente ao Aguapeí com a força principal. Do outro lado do rio, Chagas Santos lança o destacamento do Tenente Carvalho para caçar as forças artiguistas e parte, no dia 20, ele mesmo na direção do Povo da Cruz, que ocupou. Constitui outro destacamento sob o comando do Capitão José Maria Gama Lobo, do Regimento de Infantaria de Santa Catarina, para atacar Yapejú. No dia 31, ocupava São Thomé, onde acolheu o destacamento do Tenente Carvalho que produzira consideráveis baixas e prejuízos ao inimigo.

Em fevereiro, Chagas Santos, estacionado em São Thomé, toma importantes medidas políticas e militares. Ao mesmo tempo que lança novamente o Tenente Carvalho na direção do Rio Paraná, para caçar as forças inimigas, envia carta ao Ditador Francia, do Paraguai, oferecendo garantias de que as forças brasileiras não hostilizariam os paraguaios.

O êxito de Chagas Santos no início de 1817 arrefeceu bastante o impulso artiguista nas Missões, mas não encerrou as hostilidades na região. Meses depois, em julho, André Artigas reocupou Apóstolos, nas Missões Ocidentais, sem que Chagas Santos conseguisse desalojá-lo dali.  Em março do ano seguinte, 1818, Chagas Santos voltou a incursionar do outro lado do Uruguai, conquistando a povoação de São Carlos e forçando André Artigas a se refugiar no interior da província de Entre-Rios. Depois de um ano, o caudilho estaria de volta, conquistando em março de 1819 a povoação de São Nicolau, aquém do Uruguai, não conseguindo Chagas Santos desalojá-lo. Somente alguns meses depois, André Artigas foi definitivamente vencido, ao ser capturado às margens do Uruguai, no Passo de São Lucas, depois de derrotado por José de Abreu em Itacurubi, a 6 de junho de 1819. Remetido preso a Porto Alegre, daí foi enviado ao Rio de Janeiro, onde permaneceu encarcerado até ser “libertado com outros prisioneiros e mandado para Montevidéo  pelo navio inglês Francis, em 7 de junho de 1821” (CALMON, 1947, p. 88).

As Missões, principalmente depois de 1817, foram uma frente secundária da guerra. Depois da caça aos artiguistas que Chagas Santos promoveu do outro lado do Uruguai, Andresito só conseguiria voltar a atacar as Missões Ocidentais, os Sete Povos, em março de 1819, quase dois anos depois, para ser batido em Itacurubi e, em seguida, preso. Não obstante, a luta intermitente que ai se desenrolou serviu para manter acesa, por um algum tempo, a mística libertária que sustentava o projeto politico de Artigas. A derrota definitiva de André Artigas nas emblemáticas Missões teve, por conseguinte, grande significado, simbólico, muito mais do que militar.

Em 1825, a despeito dos esforços anteriores de José Bonifácio em estabelecer uma aliança defensiva entre o Brasil e a Confederação das Províncias do Prata, o governo de Buenos Aires estimulou a revolta da província Cisplatina, então incorporada ao Império, e a anexou, provocando a declaração de guerra. Concomitantemente, a situação política interna do Brasil se deteriorara, por conta do fechamento de Assembleia Constituinte por D. Pedro I, em 1823, e eclosão da revolta da Confederação do Equador no Nordeste, acontecimentos que trouxeram impopularidade para o Imperador e acirraram a luta política na Corte.    

Enquanto a política no Rio de Janeiro fazia sua própria guerra, no Sul, soldados e estancieiros se preparavam para enfrentar a guerra real que eles sabiam que haveria de chegar à fronteira. O governo, além de enviar os reforços que acompanharam o novo comandante das Armas da província,  tomava outras providências para estimular e organizar a defesa, nomeando, em 26 de maio de 1826, para  “Coronel Comandante o Coronel Graduado Bento Manuel Ribeiro“ (ARQUIVO HISTÓRICO DO EXÉRCITO, 1826, Códice 88, S. Pedro do Sul, p. 1) e em 3 de junho o Tenente-Coronel Cláudio José de Abreu para Comandante das Missões, em substituição ao Coronel João José Palmeiro, determinando que “se passe as necessárias ordens para que o dito Tenente-Coronel Claudio entre logo no exercicio daquele comando. “(Ibid., p. 2).

Do lado inimigo, o Exército de Observação, criado por Buenos Aires, inicialmente reunido em Arroio del Molino, na margem direita do Uruguai, passara o rio, em Salto, no final de janeiro de 1826. Reunindo inicialmente cerca de dois mil homens, em junho de 1826 já tinha aumentado seu efetivo para cerca de três mil homens. Com as milícias orientais montando a quatro mil homens, o inimigo mobilizaria até julho desse ano um total de sete mil homens.  Os primeiros reflexos dessa concentração de tropas inimigas na campanha da Cisplatina foram as ações de Rivera e do Coronel Paz sobre a fronteira do Rio Grande, contra as brigadas de Bento Manuel e Bento Gonçalves, no Quaraí e no Jaguarão, respectivamente, em maio e agosto de 1826.

O comandante de armas de província de São Pedro do Rio Grande era, desde 1822, o Tenente-General José Abreu, herói da Guerra de 1816, substituído mais tarde pelo General Massena Rosado. Com o início da rebelião de Lavalleja, em 1825, a ordem de batalha das tropas brasileiras na província iria sofrer as primeiras alterações. Inicialmente, José de Abreu concentrou as tropas que dispunha para defesa da província no Passo do Rosário, como fizera Curado quase dez anos antes, mas, em seguida decidiu se internar na Cisplatina, indo ao encontro das forças rebeldes. Desse afastamento resultou a intervenção do Presidente da Província, o Visconde de São Leopoldo, que dividiu a extensa fronteira com a Cisplatina em dois setores, o primeiro que ia do mar até Bagé, entregando-o ao Marechal Corrêa da Câmara, e o segundo, daí até o Rio Uruguai. (CIDADE, 1931, p. 29).   Essa nova articulação militar seria o embrião do Exército do Sul, denominação não mais atribuída, a partir de 1826, às forças de Lecor na Cisplatina, mas sim àquelas incumbidas de defender a fronteira da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul.

José de abreu foi substituído no comando das armas da província em 1o de dezembro de 1825, pelo General Massena Rosado, que deu início à concentração do Exército do Sul, inicialmente concebida em Bagé, mas que acabou por se consumar em São Diogo, entre os rios Ibirapuitã e Ibirapuitã-Chico, também como fizera Curado. Para o acampamento de São Diogo convergiriam as novas tropas chegadas ao Teatro de Operações a partir de 1826. O que se depreende disso tudo é que, por ocasião dos primeiros entreveros na Cisplatina, para a defesa do Rio Grande só existiam tropas milicianas, conforme correspondência que informava “que na fronteira de Missões se achava o Coronel Palmeiro, acampado na barra do Ibicuhy, (…) havendo guarnecendo dalli para cima, até Santo Angelo; e da referida barra do Ibicuhy para baixo, cruzando-se pequenas partidas (…) (CIDADE, 1931, p. 30). 

“O comboio de reforço organizado pessoalmente por D. Pedro I para as províncias meridionais embarcado em 19 de dezembro no porto do Rio de Janeiro” (WIEDERSPHAN, 1961, p. 106) trouxe com o novo Comandante das Armas, o General Massena Rosado, 700 homens de infantaria, 370 de cavalaria e 100 de artilharia, e marchou de Santa Catarina até São José do Norte, onde aguardou outras tropas. Era composto pelo 1o Regimento de Cavalaria (RC), sob o comando do Coronel João Egídio Calmon, 3Batalhão de Caçadores (BC), comandado pelo Coronel Manoel Antônio Leitão Bandeira, 4o Batalhão de Caçadores comandado pelo Major Bento José Galante, e parte do 1o Corpo de Artilharia a Cavalo (CACav), comandado pelo Capitão Lopo de Almeida Henrique Botelho e Melo (Ibid.). A essas forças vindas do Rio juntaram-se as enviadas da Bahia, de forma que uma Divisão Expedicionária pode partir, no dia 31 de março de 1826, de Pelotas para Bagé, constituída pelo 1o RC, Esquadrão da Bahia, comandado pelo Major Luís da França Pinto Garcez, pelos 3o e 4o BC, provenientes da Corte e reforçados com recrutas cearenses, um esquadrão do 3o Regimento de Cavalaria, sob o comando do Tenente-Coronel José de Castro Canto e Me Melo (que estava em São Paulo), a Bateria de seis peças do 1oCACav da Corte e outra de seis peças do 4Corpo de Artilharia de Posição de Santa Catarina, comandada pelo Capitão José  Dias Serrão, depois substituído pelo Capitão Rosado, somando cerca de 2.400 homens. A divisão foi conduzida até Santana pelo Marechal Bento Correa da Câmara, comandante da fronteira de Rio Grande (Ibid., p. 118). 

Em 1826, tem-se notícia que o 1o Batalhão de Granadeiros, o Batalhão do Imperador, no qual servia o então Capitão Luís Alves de Lima e Silva, estava em Montevidéu. No final desse ano, seria enviado ao Rio Grande o 27o BC, formado por mercenários alemães. Em 1828, tem-se notícia do 28o BC, também integrado por mercenários, reunido em Santa Maria para ser empregado nas Missões. Além dessas unidades de 1a linha, regulares, outras, denominadas à época de 2linha, foram organizadas ou completadas. Havia, além disso, um número indefinido de estancieiros-soldados (LINS, 1976, p. 428), antigos combatentes que haviam deixado as fileiras, mas atuavam como milicianos, vigiando a fronteira e atendendo às convocações quando necessário. É possível estimar que o Império dispôs de cerca de 9.000 a 10.000 homens no início da guerra, destinando cerca de 3.000 para sustentar as praças forte de Montevidéu e Colônia e outros 6.000 a 7.000 para defender a Província de São Pedro do Rio Grande. Com efeito, este último efetivo era aproximadamente o total do Exército do Sul às vésperas da Batalha de Passo do Rosário, ficando o restante da Província praticamente desguarnecida, à exceção da guarnição da praça de Rio Grande. 

Em 1822, a província de São Pedro tinha seis distritos: Porto Alegre, Rio Grande, Santo Antônio da Patrulha, Rio Pardo, Cachoeira e São Luís da Leal Bragança, os dois últimos criados a partir do desmembramento do distrito de Rio Pardo. “Existiam seis villas, doze freguesias, treze capelas e cinco povoados” (CIDADE, 1931, p. 25). Nesse ano, a população era de 106.196 pessoas e, em 1826, era orçada em aproximadamente 140.000 (Ibid., p. 26). A única estrada existente na província era a que “conduz, desde o angulo formado pelas lagôas Mirim e dos Patos, na confluencia do rio S. Gonçalo, a Missões pela barra do Monte, e a Belem sobre o Uruguay pela Coxilha Grande” (Ibid., p. 23). Porto Alegre havia sido fundada há pouco mais de cinquenta anos, substituindo Rio Grande como sede do governo, desde a invasão espanhola de 1763. Rio Grande continuava a ser a grande porta de entrada e saída para o mar, por onde escoavam as exportações da província e chegavam produtos de toda natureza. Pela estrada que seguia para Laguna, e dali pelo caminho da Lapa até Sorocaba, seguiam as tropas do comércio de muares que ajudavam a mover o Brasil. 

No final de 1826, D.  Pedro I veio ao Rio Grande do Sul trazendo reforços e nomeou o Marques de Barbacena para o comando do Exército do Sul. Essas providências foram uma antecipação em relação ao que o governo imperial sabia que estava por vir. A essa altura, estava completa a mobilização do Exército Republicano, o qual, sob o comando do General Alvear, com 12.000 homens –  um efetivo considerável para aquela região e época – estava não distante da fronteira brasileira. Em poucos dias, antes do encerramento do ano, Alvear deslocaria suas forças para invadir o Rio Grande, enquanto D. Pedro I, concluída sua visita, retornava ao Rio de Janeiro, e Barbacena já tendo assumido o seu comando no acampamento de São Diogo, sem perda de tempo, iniciaria sua marcha na direção de Bagé.

No dia 13 de janeiro de 1827, o Exército do Sul, sob o comando de Barbacena desde o dia 2, iniciou sua marcha na direção leste, conforme decisão tomada no conselho no dia 11 sobre o local da nova concentração: Bagé (FRAGOSO, 1951, p. 217). A essa altura, o Exército Republicano, sob o comando de Alvear, já iniciara a seu deslocamento para invadir o território brasileiro, marchando também na direção de Bagé. 

A decisão de marchar para Bagé teria se dado em função de não haver em Santana do Livramento “pastagens para a cavalhada, nem campo próprio para receber o inimigo” (Ibid.,p. 217), o que indica que, além da costumeira dependência dos pastos, o Exército do Sul, forte em infantaria, desejava operar em terreno favorável ao emprego dessa arma, defensivamente. Dessa decisão se verifica também que o comando brasileiro julgava possível que o inimigo se apresentasse em Santana do Livramento, local considerado impróprio para recebê-lo, e que ele poderia se apossar do material deixado aos cuidados de uma pequena guarda, daí a decisão de queimá-lo. Na noite do dia 13 de janeiro, reuniram-se ao exército o Brigadeiro Sebastião Barreto Pereira Pinto e o Coronel de Engenharia Elisiário Miranda e Brito, retornando do reconhecimento que tentaram fazer em Bagé, com vistas à escolha do local do novo acampamento do exército, sem conseguirem atingir a localidade, devido à presença de elementos avançados inimigos na região.

Às forças que partiram de Santana no dia 13 estavam incorporadas milícias do Rio Pardo (22o RC), Porto Alegre (20oRC), Entre Rios (provavelmente elementos do 23o RC de Alegrete), Missões (provavelmente o 24o RC) e Lunarejo (40oRC) (Ibid., p. 218) que originalmente defendiam a fronteira e foram sendo concentradas em Santana do Livramento.  Além dessas, a 1a Brigada de Cavalaria Ligeira, de Bento Manuel, e a 2a Brigada de Cavalaria Ligeira, de Bento Gonçalves, que guarneciam as fronteiras no Quaraí e Jaguarão se deslocaram para proteger o movimento do Exército do Sul.  Apenas nas Missões e no Jaguarão permaneceria algum efetivo para a defesa da fronteira.  Verifica-se, portanto, que a essa altura o comando brasileiro havia definido a ameaça principal a enfrentar: o Exército Republicano avançando pela Coxilha Grande. Antes de partir de Santana, Barbacena procurou colher informações do avanço inimigo, lançando o 20o e 22o RC na direção das cabeceiras do Tacuarembó, que nada encontraram. A confirmação viria no dia 23 de janeiro, quando Barbacena afirmou que “todos são unânimes (…) em que o inimigo vem reunido entrando por Bagé” (Ibid., p. 224), o que iria alterar ligeiramente a direção de marcha do Exército do Sul.

Pelo lado inimigo, considerada a decisão das Províncias Unidas de levar a guerra ao interior do território brasileiro – onde deveria ser derrotado o Exército do Sul – fazia todo sentido invadir por Bagé. A outra grande via de invasão, a oeste, sobre a Coxilha do Haedo, coberta pelas concentrações brasileiras em São Diogo e depois Santana do Livramento, serviria bem a uma ocupação dos distritos de Missões e Entre Rios. Mas além dessa via apresentar a desvantagem da possibilidade de as forças brasileiras se cobrirem nos rios Ibicuí e Santa Maria, o objetivo de guerra dos platinos em 1825 era muito distinto do de Artigas e Andresito em 1816: tratava-se agora de Porto Alegre e a sua conquista passava antes pela destruição do Exército do Sul.

Agora, o Exército do Sul, articulado num só núcleo de forças e limitado até aquele momento (janeiro de 1827) a pouco mais de 4.000 homens, tinha que tentar uma junção à frente do inimigo com mais do dobro de seu efetivo, admitindo vir a ser obrigado a recuar até o Rio Santa Maria.

A marcha estratégica de Barbacena na direção de Bagé para se juntar com a divisão que vinha de Pelotas sob o comando de Brown e então obstar o avanço de Alvear foi uma operação de alto risco. No dia 26 de janeiro, as forças de Alvear ocuparam Bagé, aí já tendo entrado anteriormente seus destacamentos avançados. Como se pode observar no mapa anterior, caso as tropas platinas não tivessem se entregue ao saque da cidade e arredores, seria fácil a Alvear vencer o Exército do Sul, pois nesse dia Barbacena ainda se encontrava no Tacuarembó e Brown estava distante. A troca de acusações entre os chefes platinos pelos erros do comando do Exército Republicano e pela lamentável conduta da sua tropa em Bagé pode ser resumida na indisciplina. Sem dúvida, os platinos perderam aí a melhor chance de vencer a guerra.

Não obstante, eles estiveram bem perto disso, no momento mais crítico vivido pelo Exército do Sul durante essa marcha estratégica. Como se viu, no dia 26 de janeiro, quando o exército estava acampado às margens do Tacuarembó, o Brigadeiro Barreto a ele se reuniu, “tendo ficado a 6a de observação ao inimigo” (Ibid., p. 227). No dia 28, o exército se aproximou do Camacuã-Chico, bivacando, sob forte chuva. No dia seguinte, 29, deslocou-se para outro ponto na margem do mesmo rio e iniciou a sua transposição, que duraria até o dia 31. 

Nesse momento, a missão de cobertura, da qual as 6a e 2a brigadas vinham até então se desincumbindo, transformou-se em proteção da força principal. No dia 30 de janeiro, a vanguarda de Alvear atacou a 2a Brigada de Cavalaria Ligeira que iniciou uma ação retardadora. No dia seguinte, a pressão aumentou, alcançando a 6a Brigada, justamente quando transpunham o rio as “carretas de munição de guerra e de boca” (Ibid.). A partir daí, tudo indica que as forças de Barreto e Bento Gonçalves atuaram de forma coordenada, sendo reforçadas pelos 20o e 40o RC, que, por ordem de Barbacena, repassaram o rio para entrar na refrega. A 6a Brigada se constituiu na retaguarda do exército, permanecendo do outro lado do rio até o dia 1o de fevereiro, quando se reuniu ao grosso da tropa. No dia 31 de janeiro, havia se reunido ao exército o Brigadeiro João Crisóstomo Calado, vindo da Cisplatina, que “preveniu ao General em Chefe, que tinha de bater-se com um Exército de dez mil homens, bem comandado, melhor organizado e armado” (TITARA, 1950, p. 116).

As ações de cobertura e proteção da transposição do Rio Camacuã entre os dias 29 e 31 de janeiro de 1827 foi um dos grandes feitos da cavalaria brasileira nessa campanha, pois a vanguarda inimiga esteve a seis quilômetros do local de passagem, sem perceber o que acontecia, estando o grosso do Exército Republicano estacionado em Santa Tecla. Escrevendo em 5 de fevereiro, data em que logrou a junção com as forças do Marechal Brown, Barbacena destacou o episódio da proteção da transposição, citando Bento Gonçalves que “batendo-se em retirada, conseguiu retardar a marcha da vanguarda inimiga, e, sem perder um só homem, fêz alguns prisioneiros, mortos e feridos” (FRAGOSO, 1951, p. 228). Havia sido superada uma situação crítica, consumando-se, sem dúvida, uma vitória estratégica do Exército do Sul que, agora, reunido e ocupando posições num terreno favorável ao emprego da infantaria da qual era forte, tinha melhores condições de enfrentar o Exército Republicano. Ainda que o posicionamento do Exército do Sul houvesse melhorado a sua situação estratégica, isso não significava que ela fosse boa.  Inferior em efetivo e com menor mobilidade, em breve, ele seria forçado a assumir riscos ainda maiores.

A junção das forças de Barbacena e Brown no dia 5 de fevereiro foi um evento importante na campanha militar. Conforme Barbacena escreveu (Ibid., p. 236) e os registros das deliberações platinas atestam, até o dia 5, o Exército Republicano tencionou cruzar o Camacuã e ir ao encontro do Exército do Sul: mas já era tarde. Por conseguinte, a decisão do comando do Exército Republicano caracteriza uma mudança na direção das suas operações, no sentido de levá-las para outra região.

Desses registros, também fica evidente a concepção estratégico-operacional da campanha a partir desse momento: atrair o Exército do Sul a uma batalha decisiva a ser travada em local escolhido pelo comando do Exército Republicano.

Nas duas semanas seguintes, Alvear se concentraria na consecução desse objetivo, manobrando de forma aparentemente contraditória e ocultando suas intenções, até atrair o Exército do Sul ao Passo do Rosário.

Alvear ocupou-se então da fase seguinte de implementação de seu plano operacional: fazer com que o Exército do Sul se dirigisse ao Passo do Rosário e sincronizar a marcha do Exército Republicano de forma a chegar um pouco antes do inimigo ao local da batalha. Com efeito, encaminhara-se, desde o dia 11 de fevereiro, uma perseguição do Exército Republicano pelo Exército do Sul e Alvear tinha interesse em manter essa situação que lhe permitia atrair os brasileiros à armadilha que preparava. Um alto numa posição forte, uma concentração de forças ou uma manobra ofensiva dos platinos colocaria o Exército do Sul em alerta sobre os riscos que corria naquele desabalado seguimento e faria com que ele assumisse uma atitude defensiva, frustrando os planos de Alvear. O comandante republicano desejava manter esse clima de açodamento, reforçando a ideia de uma retirada precipitada e desordenada dos platinos. 

Foi nesse momento que aconteceu um episódio obscuro. Alvear precisava correr para o local escolhido para a batalha no momento em que tivesse certeza de que os brasileiros haviam mordido a isca: precisava ter a confirmação de que o Exército do Sul marchava para o Passo do Rosário. Assim, esperou os efeitos de suas ações de dissimulação e segurança sobre o comando brasileiro, permanecendo no Cacequi nos dias 17 e 18[1]. E eles não demoraram por acontecer. Em São Gabriel, “às 5 horas da tarde de 17, Barbacena recebeu uma informação de Bento Manuel, da máxima importância” (Ibid., p. 239): era a parte do Comandante da 1a Brigada de Cavalaria Ligeira que dava conta da marcha inimiga na direção de São Simão. Barbacena decidiu então marchar para o Passo do Rosário com o intuito de interceptar o Exército Republicano, em retirada, do outro lado do Santa Maria. No entanto, se Barbacena recebeu a informação de Bento Manuel no final de tarde de 17, e se deslocou somente no dia 18, como se explica o citado por Tasso Fragoso que “desde 17 (…) a retaguarda de Alvear afirmara que Barbacena ia no rumo do dito passo” (Ibid., p. 239)? A proclamação que Barbacena fez às tropas nessa noite mencionou a direção de marcha? Sua decisão de marchar por Passo do Rosário vazou? Agentes inimigos a captaram e transmitiram a Alvear? 

Quanto a Alvear, tendo obtido essa informação, nessa noite de 17, ou da sua força de cobertura, no dia seguinte, ele esperou até às 16hs30 do dia 18 para partir de seu acampamento no Cacequi, quando o Exército do Sul já cruzara o Banhado do Inhatim, e acampava às margens do Arroio do Salso, definindo sua direção de marcha para Passo do Rosário. Às 04hs30 de 19 de fevereiro, o Exército Republicano fez um alto de duas horas nas proximidades do local do campo de batalha do dia seguinte, e depois seguiu até o Passo do Rosário, onde chegou às 11hs00.

O Exército do Sul iniciou sua marcha do dia 19 às 05hs30, tendo os dois exércitos se avistado nessa manhã, com os platinos prosseguindo na sua marcha para o Passo do Rosário vindos de Cacequi, enquanto os brasileiros se dirigiam ao mesmo ponto pelo caminho que vinha de São Gabriel. Deve ter havido uma surpresa no comando brasileiro, pois o inimigo que se pensava estar cruzando o Santa Maria no Passo de São Simão, apresentava-se agora aos olhos do Exército do Sul rumando para o Passo do Rosário. No entanto, o escoamento da força platina para as margens do Santa Maria confirmou, aos olhos do comando brasileiro, a intenção dos platinos de cruzarem o rio. As vanguardas trocaram tiros durante essa jornada e depois se reuniram às respectivas forças.

Chegando ao Passo do Rosário, Alvear determinou a travessia do rio, que não dava vau. “Um esquadrão de couraceiros atravessou o rio a nado, e à tarde regressou do mesmo modo” (Ibid., p.268). Tudo isso, sem dúvida, foi observado por elementos da vigilância brasileira.  Às 16hs00, Alvear convocou um conselho de guerra e participou que retornaria na direção do inimigo, tomando-se então medidas de preparação para o combate. Ao pôr do sol, a tropa iniciou, em sentido contrário, o deslocamento noturno pelo caminho que havia trilhado pela manhã, com a Divisão Lavalleja à testa, fazendo alto às 23hs00, a cerca de dois quilômetros do passo, onde bivacou.

Barbacena também convocou um conselho de guerra no dia 19, nele ficando  deliberado “que se devia acometer o inimigo em qualquer lugar e disposição em que fosse encontrado”(Ibid.,p. 241). No início da madrugada do dia 20 de fevereiro, o Exército do Sul partiu de seu acampamento na estância de Francisco José na direção do passo do Rosário para atacar o Exército Republicano que, na avaliação do comando brasileiro, estaria cruzando o Rio Santa Maria. O plano de Alvear funcionara perfeitamente: o Exército do Sul estava no lugar e atitude que lhe convinha. Ao alvorecer, todo o Exército Republicano, em silêncio e na mais perfeita ordem, posicionado nas elevações que dominavam a baixada da Sanga do Areal, aguardava as forças de Barbacena. Agora, só a disciplina e a bravura poderiam salvar do desastre certo o Exército que defendia o Sul do Brasil.

Depois de partir, por volta da 1 hora da manhã do dia 20, da estância de Antônio Francisco, onde estacionara na noite de 19, o Exército do Sul se deparou, por volta das seis horas da manhã, com as tropas platinas posicionadas nas alturas da denominada Coxilha de Santa Rosa, a seis quilômetros do Passo do Rosário.

As forças brasileiras marchavam em coluna, dentro da ordem de batalha definida desde 5 de fevereiro (FRAGOSO, 1951, p. 241) e na seguinte ordem de marcha:

o   2a Brigada de Cavalaria Ligeira, sob o comando do Coronel Bento Gonçalves, com cerca de 600 homens:

·      21o RC, de Rio Grande, sob o comando do Major M. Soares da Silva;

·      39o RC, da Vila de Serro Largo, sob o comando do Tenente-Coronel oriental Isas Calderon.

o   2a Divisão, sob o comando do Brigadeiro João Crisóstomo Calado, com cerca de 1.600 homens:

·      2a Brigada de Infantaria, sob o comando do Coronel José Leite Pacheco:

ü  13o BC, da Bahia, sob o comando do Tenente-Coronel Moraes Cid[1];

ü  18o BC, de Pernambuco, sob o comando do Coronel Bento José Lamenha Lins.

·      3a Brigada de Cavalaria, sob o comando do Coronel João Cláudio de Barbosa Pita:

ü  6o RC, do Rio Grande do Sul, sob o comando do Major Bernardo Joaquim Correia;

ü  20o RC de Milícias, de Porto Alegre, sob o comando do Coronel J.J. da Silva;

ü  Esquadrões da Bahia, sob o comando do Major Luís da França Pinto Garcez.

·      4a Brigada de Cavalaria, sob o comando do Coronel Tomás José da Silva:

ü  3o RC, de São Paulo, sob o comando do Tenente-Coronel Xavier de Sousa;

ü  5o RC, do Rio Grande do Sul, sob o comando do Coronel Felipe Néri de Oliveira.

o   Artilharia com 12 peças, conduzidas e guarnecidas por 240 homens, sob o comando do Coronel Tomé Madeira:

·      4 Baterias de duas peças de 6 [2], do 1o Corpo de Artilharia Montada do Rio de Janeiro sob o comando do 2o Tenente Mallet, do 1o Tenente Português Pereira e dos Capitães Correa Caldas e Lopo Botelho. 

·      4 peças de 6, sendo um obus, do Regimento de Artilharia de Posição de Santa Catarina, sob o comando do Major Samuel da Paz. 

o   1a Divisão, sob o comando do Brigadeiro Sebastião Barreto Pereira Pinto, com cerca de 2.700 homens:

·      1a Brigada de Infantaria, sob o comando do Coronel Leitão Bandeira:

ü  3o BC, do Rio de Janeiro, sob o comando do Major J. Crisóstomo da Silva[3];

ü  4o BC,  do Rio de Janeiro, sob o comando do Tenente-Coronel Manuel Freire de Andrade;

ü  27o BC, de mercenários alemães, sob o comando do Major Luís Manoel de Jesus. 

·      1a Brigada de Cavalaria, sob o comando do Coronel João Egídio Calmon:

ü  1o RC, do Rio de Janeiro, sob o comando do Tenente-Coronel Sousa da Silveira[4];

ü  24o RC, de guaranis das Missões, sob o comando do Major Severino de Abreu.

·      2a Brigada de Cavalaria, sob o comando do Coronel Araújo Barreto[5]:

ü  4o RC, do Rio Grande do Sul, sob o comando do Tenente-Coronel M. Barreto Pereira Pinto;

ü  40o RC, de Santana do Livramento, ou Lunarejo, sob o comando do Tenente-Coronel José Rodrigues Barbosa;

ü  Esquadrão de Lanceiros alemães, sob o comando do Capitão von Quast.

     Atrás, vinham os trens de campanha e bagagens.

A vanguarda, sob o comando do Marechal Abreu, partira mais cedo e ia a certa distância da coluna principal, composta por 560 milicianos. Feito o contato, o Comandante em Chefe e seu Chefe de Estado-Maior fizeram um rápido reconhecimento e decidiram atacar o inimigo que se posicionara no alto da coxilha que corria paralela à sanga que dividia a baixada.

A tropa brasileira trocou os cavalos e começou a se desenvolver no terreno, deixando a formação de marcha, para adotar o dispositivo de ataque, concebido pelo Chefe de Estado-Maior, com a 1a Divisão em 1o escalão e 2a Divisão em 2o escalão, sendo empregada a 2a Brigada de Cavalaria Ligeira para cobrir o flanco direito do Exército, enquanto a vanguarda de Abreu, à esquerda, mantinha contato com o inimigo. Enquanto esse movimento se fazia, e a vanguarda de Abreu e a 2a Brigada de Cavalaria Ligeira trocavam tiros com os atiradores inimigos além da sanga, o Marechal Brown posicionou a 1a Divisão para o ataque. A 2a Divisão não conseguiria adotar o dispositivo de ataque, uma vez que ela seria logo engajada pelas forças de Lavalleja, no flanco esquerdo do Exército do Sul.

O ataque às posições inimigas iria se desencadear, portanto, somente com a 1a Divisão, sem que ela contasse com um apoio ou uma reserva. Às 07hs30, pronto o dispositivo, a bateria de artilharia comandada pelo Tenente Mallet, que estava com a 1a Divisão, abriu fogo e a sua 2a Brigada de Cavalaria carregou, com o comandante do 20o RC à frente, o Tenente-Coronel Rodrigues Barbosa, fazendo os atiradores do 5o BC e cavalaria inimigas recuarem. A 1a Brigada de Infantaria, do Coronel Leitão Bandeira, ultrapassou, então, a sanga e começou a subir a coxilha, levando de vencida elementos do 5oBC que desceram a elevação para hostilizá-la. Nesse entrevero, o 27o BC levou a melhor sobre seu adversário, o 5oplatino, que sofreu diversas baixas e, mesmo reforçado, recuou em confusão.

A infantaria da Divisão continuou a avançar, seguida agora pela 2a de Cavalaria. A Divisão do General Laguna, carregou três vezes sobre ela, sendo repelida com muitas perdas, dentre as quais, o Coronel Leonardo Oliveira, morto, e o Capitão Pedro de Melilla e vários homens feitos prisioneiros. O avanço de Barreto levou o comando platino a deslocar quase toda a sua infantaria (1o, 2o e 3o BC) e toda a artilharia para o centro ameaçado, que iniciaram intenso fogo contra as forças brasileiras, sem, no entanto, atrever-se a avançar sobre ela. Pressentindo novos ataques, com a reunião de forças de cavalaria à infantaria inimiga, o Comandante da 1a Brigada, Coronel Leitão Bandeira, determinou que a infantaria formasse quadrados para receber as cargas iminentes.  Alvear empregou  um de seus melhores e mais bem armados regimentos, o 3o RC, de Brandsen, contra a 1a Divisão, em carga por escalões, ataque que também fracassou, morto o próprio Brandsen por um tiro de fuzil. Seguiu-se nova carga, do 2o RC, de Paz, também sem sucesso.

Nessas ações da 1a Divisão, a unidade que suportou o maior peso dos ataques inimigos foi o 4o BC, o qual teve feridos o seu comandante, o Tenente-Coronel Freire de Andrade, com gravidade, e mais quatro oficiais; e mortos o Major Galamba e os Capitães Ferreira e Vasconcelos, o que levou o Coronel Leitão Bandeira, comandante da brigada, a acumular o comando do 3o e 4o BC.   Entre 07hs30 e 13h00, hora que Barbacena determinou o rompimento do combate, a 1a Divisão do Exército do Sul fez recuar o 5o BC, venceu a Divisão Laguna, sustentou cerrado fogo com toda a infantaria e artilharia platinas e fez fracassar as cargas do 3o e 2o RC. Durante a batalha, a 1a Divisão permaneceu senhora do terreno em que combateu, permanecendo em  atitude ofensiva durante a maior parte do tempo e formando quadrados apenas para receber as cargas inimigas que desbaratou.

Enquanto a 1a Divisão de Barreto acometia o centro do dispositivo das forças de Alvear, a 2a Brigada de Cavalaria Ligeira permanecia na sua missão de cobertura do flanco direito. Porém, inesperadamente, o 39o RC, sob o comando do oriental Isas Calderon, saiu da formação, abandonando o campo de batalha, deixando Bento Gonçalves apenas com o 21o RC, do Major Soares da Silva, com cerca de quatrocentos homens. Os regimentos de Lavalle e Vilella, com aproximadamente 800 homens, carregaram sobre ela, dispersando-a, embora Bento Gonçalves e os remanescentes da 2a Brigada continuassem na luta.  Provavelmente, foram esses regimentos de Lavalle e Vilella que se lançaram, em seguida, contra a 1a Brigada de Cavalaria, na direita da Divisão Barreto, da qual o 24o RC, de guaranis das Missões, debandou, restando apenas o 1o RC que suportou sozinho o combate nesse flanco, perdendo quase a metade de seu efetivo. Dessas Dessas unidades ficaram mortos no campo de batalha o Comandante do 24o RC, Major João Severino de Abreu, e cinco oficiais do 1o RC: o Capitão João Antônio dos Reis, o Tenente Amador de Lemos, o Alferes José Francisco de Melo, o Quartel-Mestre Joaquim Plácido Nogueira e o Cirurgião Ajudante Antônio Pereira Ferreira.

Ao mesmo tempo em que a 1a Divisão combatia do outro lado da sanga, o Brigadeiro Andréa, cavalgando no campo de batalha para expedir ordens do Comandante em Chefe e verificar a situação, orientou a bateria do Tenente Mallet – à qual haviam se juntado parte do 1o RC e um destacamento de 30 ou 40 caçadores do apoio à artilharia – a dirigir tiros contra a cavalaria inimiga que, infiltrada, vinha agora da retaguarda. A traição do 39o RC e a fuga do 24o RC foram acontecimentos graves que deixaram o flanco direito brasileiro exposto e custaram caro ao 1o RC. Essa crise no flanco direito, que poderia ter comprometido a 1a Divisão, só não foi pior por que a essa altura havia sido transferida para aquele setor a 3a Brigada de Cavalaria (Coronel Barbosa Pita), até então mantida em reserva pelo comandante da 2a Divisão, o Brigadeiro Calado, que já repelira dois ataques da cavalaria inimiga, o último deles enfrentado pelo 20o RC, de Porto Alegre, dessa brigada, junto com o 5o RC, da 4a Brigada de Cavalaria. Essa 3a Brigada atuou de forma quase independente no flanco direito, substituindo a 2a Brigada de Cavalaria Ligeira, pois o 6o e 20o RC, bem como o Esquadrão da Bahia, que a constituíam, foram citados pelos seus feitos em combate (pelo Marquês de Barbacena, o 20oRC, e pelo Quartel-Mestre, Tenente-Coronel Miranda e Brito, o esquadrão).

A artilharia brasileira foi empregada de maneira descentralizada, e não numa única bateria como fizeram os platinos. Tasso Fragoso diz que as oito peças do Corpo de Artilharia a Cavalo estavam “associadas à 1a Divisão” e as quatro peças do Regimento de Artilharia de Posição de Santa Catarina  “associadas à 2a Divisão” (FRAGOSO, 1951, p. 243 e 244). Já o Tenente-Coronel Miranda  e Brito, Quartel-Mestre General, informa em sua parte de combate que “a artilharia estabeleceu duas baterias em lugares oportunos com 4 peças em cada Divisão e 4 para reserva e movimentos” (Ibid., p. 414).  O Marechal Brown e o Tenente-Coronel Miranda Brito testemunham que o ataque da 1a Divisão foi apoiado por duas peças comandadas pelo 2o Tenente Mallet. Quanto ao início da ação, Miranda e Brito e o Brigadeiro Calado, Comandante da 2a Divisão confirmam que a abertura de fogo foi geral, entre 7 e 8 horas, segundo este último, e às 07hs30, de acordo com o primeiro. Calado testemunhou o início do fogo de artilharia da peça que havia sido destacada com Abreu e de uma bateria de duas peças que estava no centro da posição, protegida por uma companhia de caçadores, perto da posição inicial de Barbacena. Estas duas peças seriam incorporadas por Calado à sua Divisão que as empregou nos “ângulos do quadrado” formado pela 2aBrigada de Infantaria para receber a cavalaria inimiga. Os esboços de Seweloh confirmam o emprego de duas peças de artilharia com a 2a Divisão durante seu combate defensivo com a cavalaria platina. A peça destacada com Abreu seria perdida ante a carga inimiga que fez debandar sua vanguarda e, em seguida, retomada pelo 5o RC, por ordem de Calado.

Depoimentos constantes das partes de combate atestam o bom resultado alcançado pela artilharia do Exército do Sul na batalha. Brown lamentou que “o mau estado das bêstas de nossa Artilharia não permita fazer maior uso dessa arma”, mas assinalou que “o tenente Mallet, comandante de duas peças de artilharia, que protegia o ataque da 1a Divisão, desempenhou com decidida atividade, e boa eficácia de tiro, o seu dever” (Ibid., p. 411). Miranda e Brito também destacou a atuação de Mallet e informou que “tôda a Artilharia se portou maravilhosamente em todo tempo da ação, que durou oito horas”(Ibid., p. 415). Dos testemunhos, depreende-se que a artilharia brasileira realizou durante a batalha, na medida do possível, o que hoje se chama de manobra de material, o deslocamento das peças de posição em posição, conforme se esgotava o alcance de seus tiros, para fazer o que se chamava de ”acompanhamento”. Mallet acompanhou com suas duas peças a 1a Divisão até a sanga que dividia o campo de batalha, não a transpondo, no entanto. Mas o emprego descentralizado num campo de batalha de linhas descontínuas – por onde galopava a cavalaria inimiga que havia se infiltrado entre as divisões ou as flanqueado – custou caro à artilharia. Dos quatro comandantes de bateria do Corpo de Artilharia a Cavalo, perderam-se dois: o Capitão Caldas, feito prisioneiro, e o 1o Tenente Português Pereira, gravemente ferido, que depois veio a falecer em São Gabriel. A determinada altura da batalha, a bateria comandada por Mallet, que montava não mais a 2, mas até 4 peças, fazia disparos contra a cavalaria inimiga infiltrada pelo flanco direito. Quando Barbacena determina o rompimento do combate, é a 2a Divisão que vai levar ”a maior parte da nossa artilharia em dispersão (…)  na  [sua] frente e guarda” (Ibid., p. 418).

Depois de iniciado o ataque da Divisão de Barreto, a batalha se tornou não linear, não somente porque era considerável o espaço entre as divisões brasileiras, por onde se infiltravam frações de tropa platinas, como pela atuação destas, sem comando e controle de Alvear. Enquanto as 1a e 2a Divisões travavam a batalha principal, ao centro e à esquerda, as tropas brasileiras à sua retaguarda – baterias de artilharia, caçadores em apoio a elas e a 3a Brigada de Cavalaria – envolveram-se em diversos combates contra destacamentos de cavalaria inimiga que vinham do lado direito e da retaguarda. Um deles, que chegou à área de trens na retaguarda, empenhou-se, antes de ser aniquilado, na destruição de carretas de bagagem, aumentando a confusão que aí já se verificava no saque perpetrado por muitos dos seus próprios condutores e desertores. À esquerda, eram menores as oportunidades para a cavalaria inimiga flanquear o Exército do Sul, não só pelo menor espaço na baixada limitada ao sul pelo Arroio Imbaé, como pela presença da  Divisão do Brigadeiro Calado.

Desde as 08hs00, no flanco esquerdo do Exército do Sul, os 1.600 homens da  2a Divisão enfrentavam os 2600 cavalarianos do 1o Corpo do Exército Republicano, sob o comando de Lavalleja. Inicialmente, a 2a Divisão, de Calado, esteve à margem da estrada por onde o Exército do Sul chegara ao campo de batalha, ao lado direito da coluna de marcha, sendo, em seguida, posicionada mais à esquerda, por determinação de Barbacena. A grande concentração de cavalaria do 1o Corpo de Lavalleja, percebida por Barbacena, fez cancelar o plano do Chefe de Estado-Maior de empregar a 2a Divisão em apoio ao ataque da 1a, sendo-lhe ordenado que se aproximasse do exército, assumindo uma atitude defensiva na encosta que dominava a baixada às margens do Imbaé.  Nessa posição, à sua esquerda ficou o destacamento de Abreu, e próximo, à direita, uma bateria de artilharia e o Comandante-em-Chefe.

Nesse flanco esquerdo, o primeiro choque se deu após o início do ataque da 1a Divisão ao centro, quando os orientais caíram sobre os milicianos de José de Abreu, levando-os de roldão até a beira do quadrado formado pelos 13o e 18o BC, que se viram na contingência de abrir fogo contra a massa de amigos e inimigos que se aproximava perigosamente, perecendo nesse incidente o próprio Marechal Abreu. Realmente, a rajada disparada pelos caçadores e as duas peças de artilharia posicionadas nos ângulos do quadrado foi devastadora, pois deixou o solo juncado de mortos e feridos do inimigo que se retirou. Um segundo ataque foi repelido pelo 5o RC e 20o RC, das 4a e 3a Brigadas de Cavalaria, respectivamente, que integravam a 2a Divisão. Depois disso, com a crise no flanco direito do Exército, o Brigadeiro Calado recebeu ordem de Barbacena para destacar a 3a Brigada de Cavalaria para apoiar a 1a Divisão. Com o efetivo reduzido agora a cerca de mil homens, Calado lançou um esquadrão para afugentar uma força equivalente que buscava envolver sua posição e se preparou para enfrentar os dez esquadrões inimigos que viu se formarem em duas linhas para carregarem contra ele.  Nesse momento, chegou a Calado o Coronel Joaquim Antônio de Alencastro, com ordem de Barbacena para se deslocar com sua Divisão para a direita, certamente para ser empregado no apoio ao ataque final da 1aDivisão que poderia decidir a batalha. Como a ordem de Barbacena era condicionada a estar Calado “desembaraçado do inimigo”, e diante do ataque iminente, o próprio emissário do Comandante em Chefe a cancelou. Calado se preparou então para receber o ataque inimigo, colocando a sua cavalaria à retaguarda do quadrado formado pelos caçadores. A carga foi aguardada pelos infantes do 13o e 18o BC a pé firme, até o inimigo chegar a 20 passos de distância da linha, quando abriram fogo, desbaratando a cavalaria oriental. Saiu-lhe no encalço o 5o RC, com o seu comandante Coronel Neri e o Brigadeiro Calado à frente. Depois dessa ação vitoriosa, chegou a Calado a ordem de retirada, devendo a 2aDivisão seguir a 1a, que já rompera o combate. Dois esquadrões inimigos, identificados por Calado como 2o e 4o, ainda tentaram separar o 5o RC da Divisão, sendo alvejados por rajadas do quadrado da 2a Brigada com tanta eficácia que o primeiro debandou e do segundo só ficarem “16 a 20 homens a cavalo”. Entre 08hs00 e 14hs00, quando iniciou sua marcha na direção de Cacequi, a 2a Divisão desbaratou três ataques inimigos desferidos contra ela em campo aberto por forças numericamente superiores, principalmente no último, quando a força inimiga tinha o dobro de seu efetivo.

Logo depois do ataque de Barreto, à medida que brotavam da coxilha em frente esquadrões e mais esquadrões inimigos, ficou claro para os comandantes brasileiros que o inimigo estava todo reunido do lado de cá do Santa Maria: o véu se rompera no nível tático. Ao Exército do Sul restou combater para sobreviver à armadilha em que caíra.

A batalha principal teve três grandes ações: o ataque da 1a Divisão, de Barreto; a carga de Lavalle e Vilella contra o flanco direito do Exército e da 1a Divisão; e o sustentado combate da 2a Divisão, de Calado, no flanco esquerdo. Delas, a primeira foi a mais importante e que mais perto esteve de decidir a batalha. Seu  ponto culminante aconteceu pelo final da manhã, quando as cargas dos 3o e 2o RC, de Brandsen e Paz, terminaram em desastre, e a Divisão de Barreto se preparava para carregar de frente contra a infantaria e artilharia inimigas postadas no alto da coxilha. O Exército do Sul escapara da armadilha e estivera perto de alcançar uma vitória decisiva no campo de batalha.

A presa de Alvear, o Exército do Sul, fora colocada na situação e local que ele desejava. O debate se Alvear pretendia cruzar ou não o Santa Maria e travar batalha do outro lado do rio não faz muito sentido, pois se o Exército do Sul visse o inimigo todo reunido e à espera dele, certamente não o atacaria, manobrando para continuar sua missão de defesa da província. Na parte de combate de Brown – responsável pelo posicionamento das tropas para o combate – vê-se que a decisão do comando brasileiro de efetuar o ataque se deu na convicção de que o Exército do Sul investia contra uma parte do Exército Republicano deste lado do rio. Tampouco faz sentido colocar a Batalha do Passo do Rosário como um acontecimento ligado à Cisplatina: ela foi travada em território brasileiro, por causa da Província do Rio Grande e por combatentes brasileiros indignados com a invasão de suas terras e a ameaça às suas casas, bens e famílias, um fator que pressionava enormemente o Marquês de Barbacena a procurar o combate, como ele assinalou nas suas partes ao Ministro da Guerra.

As três grandes ações da batalha – o ataque de Barreto, a carga de Lavalle e a defesa de Calado – se deram em condições de inferioridade numérica brasileira, e mesmo de traição de efetivos de lealdade duvidosa, como foi o caso dos 24o e 39o RC que abandonaram o campo de batalha. Pelo meio da manhã, já em curso esses combates, o véu fora rompido, não restando qualquer dúvida aos comandantes brasileiros que eles enfrentavam todo o Exército Republicano. Mas, o notável é que, tanto Barbacena, o Comandante em Chefe, como Barreto, o comandante tático do ataque principal, acreditavam que poderiam vencer a batalha, o que denota que o que assistiam lhes era nitidamente favorável.

Pelo lado platino, o Exército do Sul se mostrou uma presa imprevisível e perigosa. Ao invés de se deixar cercar e abater, ou debandar ante a superioridade numérica inimiga de quase 100%, o Exército do Sul atacou e continuou atacando. O avanço da Divisão Barreto causou uma crise grave na situação tática do Exército Republicano, que nem as cargas de cavalaria de Laguna, de Brandsen e de Paz, e nem a concentração de praticamente toda sua infantaria e toda artilharia conseguiram encerrar. O perigo da ruptura do centro do Exército Republicano perdurou até que a Divisão Barreto recebesse ordem para se retirar, depois que Barbacena chegou à conclusão de que não podia reforçá-la com a 2aDivisão.

O que Barbacena e Barreto viram no campo de batalha até esse momento foi a superioridade em combate da infantaria brasileira apoiada pela cavalaria que se achava integrada às duas divisões. Todas as cargas da cavalaria platina lançadas contra elas fracassaram e outras unidades platinas não se aproximaram delas. A confusão gerada pela cavalaria platina infiltrada entre as divisões brasileiras se somou à confusão na área de trens e bagagens, à qual se juntaram as pequenas frações de tropa brasileiras, baterias de artilharia disparando em diferentes direções e caçadores e cavalarianos lutando com esses destacamentos inimigos que atuavam desordenadamente. Em resumo, confusão de uma batalha disseminada que corria paralela e independente da principal.

Alvear fora brilhante ao trazer o Exército do Sul à situação do alvorecer do dia 20 de fevereiro, mas não teve poder de combate e condições de comando e controle para obter a vitória tática em campo de que precisava para consumar a superioridade estratégico-operacional que obteve nas semanas anteriores à batalha. Barbacena, contrariado com a defecção dos 24o e 39o RC e de outros desertores, frustrado, sem dúvida, por ter estado tão perto da vitória decisiva que não só ele, como seu Chefe de Estado-Maior, viu ao alcance da mão, demorou alguns dias para se dar conta do que ocorrera: “pelo que vi, e pelas informações que recebi, estou cada vez mais convencido do brilhante comportamento do exército” (FRAGOSO, 1951, p. 409). Mas a essa altura, o seu azedo ofício de 25 de fevereiro já tinha sido despachado.

A apreciação da batalha permite concluir pela vitória tática brasileira, uma vez negada ao inimigo a consecução do seu grande objetivo: a destruição completa do Exército do Sul. Para a compreensão dessa vitória basta colocar dois exemplos, em distintos escalões. O primeiro, de uma companhia que atrai a uma emboscada um pelotão, safando-se este da armadilha, no procedimento padrão de contra-emboscada, quase conseguindo vencer a força superior e causando mais baixas do que sofreu. Outro, o de uma brigada blindada atraída a uma defesa móvel da qual se desengaja, com poucas perdas, continuando a atuar sobre a divisão inimiga que pretendeu destruí-la. A resposta à pergunta sobre quem teria vencido esses dois confrontos sugeridos não deixa dúvidas sobre quem venceu a batalha do Passo do Rosário no dia 20 de fevereiro de 1827. De alguma forma, uma primeira notícia, incompleta e imprecisa, do que havia se passado próximo ao Passo do Rosário chegara ao Conde de Lages, Ministro da Guerra, que em ofício ao Marquês de Barbacena, de 16 de março de 1827, acusou recebimento do Ofício no 5 de 5 de fevereiro e o cumprimentou pela vitória sobre o inimigo que “aqui consta ter sido completamente derrotado”.

O desfecho da batalha de Passo do Rosário teve para Alvear um outro resultado além da perda de oportunidade de destruir o Exército do Sul: ficou claro que, com os meios que dispunha, ele não tinha condições de engajar e vencer o exército brasileiro. Depois da batalha, mesmo que não tivesse condições de perseguir o inimigo, Alvear deveria ter ido ao encontro do Exército do Sul no Cacequi, facilmente alcançável. Não o fez porque, além de não dispor de poder de combate para engajar aquele inimigo, não havia mais plano estratégico-operacional que o encaminhasse. A Campanha de 1827 estava definitivamente encerrada, por mais esforços que Alvear fizesse depois, literários e de intenções, para salvá-la.

Não resta dúvida sobre a abordagem estratégica da guerra por Buenos Aires: ela foi direta, buscando uma decisão militar, para qual empenhou todos os meios de que dispunha. A ação terrestre desempenhava o papel principal nessa estratégia, com a qual o Almirante Brown, por mais que se esforçasse, não conseguia rivalizar. A ação naval dos corsários de Buenos Aires e a temeridade da insistência numa campanha naval de uma só vitória não podiam trazer vantagens decisivas para Buenos Aires.

Nesse caso, a Campanha de 1827, na qual se depositaram todas as esperanças de Buenos Aires, teve seu fracasso atestado pelo próprio Alvear, no final de março, quando, ao mencionar uma hipotética operação contra a praça de Rio Grande, “espera que a fortuna secundará este último esforço e que a êle deva a República a paz com o Império”  (Ibid., p. 330).  Era a tentativa de salvar alguma coisa do desastre, e não da “vitória”, de Ituzaingó.

Se Alvear prosseguisse perseguindo o Exército do Sul até o Jacuí e aí abrisse uma nova campanha que levasse à destruição do exército inimigo ou o expulsasse a província, ou conquistasse Porto Alegre, poder-se-ia dizer que a Campanha de 1827 fora exitosa, se não concluindo a guerra, pelo menos encaminhando as condições para outra que a concluísse, como tantas que se veem na História Militar.  Ao contrário, logo depois da batalha do dia 20 de fevereiro, Alvear rumou para São Gabriel, procurou saquear o que pode de cavalhadas na região, e saiu do território brasileiro, indo acampar, em 19 de março, no Arroio de Los Currales. Voltou para ocupar Bagé em 18 de abril, vigiado pela cavalaria de Barreto, a quem pretendeu surpreender, sem sucesso, no combate de Camacuã (23 de abril). Deixou Bagé em 9 maio e vagueou pela campanha, até sair definitivamente do território brasileiro, indo acampar em Cerro Largo, em 1o de junho. Nesse período, o Exército Republicano sofreu dois revezes, no combate de Cerro Largo (9 de maio), no qual Inácio Oribe foi capturado, e no combate de Herval (25 de maio), quando Lavalle foi ferido e sua tropa forçada à retirada. Foi um derradeiro esforço do Exército Republicano, a que Alvear se referira em março, objetivando dar alguma sustentação à iniciativa diplomática de Buenos Aires em buscar a paz com o Império.

No dia 6 de maio de 1827, quase três meses após a batalha, a missão de Buenos Aires, chefiada por Manuel José Garcia chegou ao Rio de Janeiro para negociar a paz com o Império. Inicialmente, ele tentou repetir junto ao representante britânico Robert Gordon a manobra que Sarratea fizera com Lord Strangford em 1812, mas não encontrou acolhida de Gordon que o instou a concluir logo a paz. Além do fracasso da Campanha de 1827, Buenos Aires tivera que amargar a destruição de sua esquadra, na batalha de Monte Santiago (7 e 8 de abril de 1827). Na Convenção Preliminar de paz, assinada em 24 de maio, voltava-se ao status quo ante bellum, configurando uma humilhante derrota para Buenos Aires. Não obstante, o mesmo governo que enviara Garcia ao Rio de Janeiro para “oferecer uma paz que ninguém lhe havia solicitado” (FRAGOSO, 1951, p. 341), mostrava-se ativo em criar e explorar o mito da vitória de Ituzaingó, com o qual se conseguiu ocultar por muito tempo, da esmagadora maioria da população, a verdade. 

  • A CAMPANHA DO RIO GRANDE DO SUL NA GUERRA DA TRÍPLICE ALIANÇA

        O plano de Lopes que orientou a ofensiva de 1865 partia da crença na “tradição missionária que criou um direito histórico paraguaio a grandes porções de terra em poder da Argentina e do Brasil” (MACEDO, 1998, p. 149), uma reinvindicação sustentada pelas armas já em 1756, quando os índios aldeados a leste do Rio Uruguai, orientados pelos jesuítas, resistiram às forças espanholas e portuguesas incumbidas da demarcação dos limites estipulados pelo Tratado de Madri (1750), deflagrando a Guerra Guaranítica. Reforçando essa vinculação entre religião e política, é curioso observar que, mais de cem anos depois, na rendição das forças de Estigarribia em Uruguaiana, a 18 de setembro de 1865, estava junto ao comandante paraguaio um padre, de nome Duarte, que, no dizer do Conde D’Eu, “era, ao que parece, a verdadeira cabeça dirigente da expedição […] e à sua iniciativa que todas as testemunhas atribuem as atrocidades cometidas em São Borja e Itaqui” (FRAGOSO, 1934, p. 206).

        Que Lopes concebeu e procurou seguir um plano de operações militares consoante à sua visão da guerra restam poucas dúvidas, dadas a ofensiva paraguaia em 1865, a correspondência do ditador e os testemunhos posteriores de atores privilegiados, muito embora, não tenha existido, pelo menos ao que se saiba, uma documentação que consolidasse todo o planejamento e suas alternativas, como hoje acontece. É difícil reconstituir em detalhe esse plano de operações militares com base nas fontes acima citadas, admitindo-se tão somente a possibilidade de, a partir delas, estabelecer alguns objetivos de Lopes nesta primeira fase da guerra, para, num segundo passo, inferir como ele pretendeu atingi-los, considerados os fatos e sua cronologia.

        Esses objetivos podem ser grupados em políticos e militares, interagindo para a consecução do grande objetivo, a instalação de um espaço paraguaio até a foz do Prata, em atendimento ao que Lopes denominava “equilíbrio continental”, expressão que vamos encontrar seguidamente na sua linguagem diplomática. Esse grande objetivo pode ser percebido pelos objetivos políticos que ele estabeleceu: primeiro, o papel que se auto-atribuiu como interlocutor na questão uruguaia, algo inédito para um mandatário paraguaio; e em segundo lugar, pela correspondência que manteve com Urquiza, o líder de Entre-Rios, e a influência que procurou exercer em Corrientes, tradicional alvo de interesse paraguaio. Esses objetivos eram coerentes com a situação política e geopolítica da região.
Do ponto de vista político, havia espaço para a atuação de Lopes, pois a Argentina “se encontraba en medio del processo de Organización Nacional iniciado en 1852, luego de la batalla de Caseros” (MARCO, 2003, p. 15) e o Uruguai “sufria aún las consecuencias de sus prolongados y tremendos enfrentamientos entre blancos y colorados” (Ibid., p. 16). Geopoliticamente, o caminho de Solano Lopes para Montevideo passava pelo Rio Paraná e o obstáculo à sua conquista era a presença brasileira no Prata, tanto pela Convenção Preliminar de Paz de 1828, que fizera do Brasil um fiador da independência do Uruguai, como pelo poder militar brasileiro no Rio Grande do Sul. Havia que se neutralizar um e eliminar o outro.

       Já os objetivos militares são mais difíceis de distinguir. Quais seriam as missões das duas divisões que Solano Lopes despachou, fortes de 20.000 e 10.000 homens, sob os comandos do General Wenceslao Robles e do Tenente- Coronel Estigarribia, marchando pelas margens do Paraná e do Uruguai, respectivamente? Alguns historiadores brasileiros convergem na opinião de que a missão das forças invasoras paraguaias era “assegurar a posse de uma base avançada na Argentina ou no mínimo de uma cobertura no lado sul para poder voltar-se contra o Brasil, operando na direção de Porto Alegre para decidir a guerra” (MACEDO, 1998, p. 150). Essa opinião está em acordo com o depoimento publicado no Rio de Janeiro, em 1894, pelo Dr. Vázques Sagastume, antigo representante do governo uruguaio junto a Solano Lopes.

         O Paraguai estava, pode-se dizer, em guerra declarada condicionalmente no protesto de 30 de agosto e nas notas subsequentes à Legação Brasileira. O Marechal López já havia traçado o seu plano de campanha. Um exército de mais de 20.000 homens, sob o comando do general Robles deveria bater, sendo necessário, o general Paunero, que, com 4.000 soldados constituía tôda a força regular de que o governo argentino dispunha na província de Corrientes. Acampado depois na margem do Mocoretá, poderia ajudar daí um movimento favorável que se esperava nessa província e na de Entre-Rios, proteger a divisão de 10.000 homens que deveria descer por ambas as margens do Uruguai, impossibilitar a organização de qualquer exército hostil nessas margens ou na esquerda do Paraná e garantir a retaguarda do marechal López, que invadiria pessoalmente a província do Rio Grande.

       Tal era a confiança de López no bom êxito dessa campanha, que tinha marcado no mapa um lugar junto a Pôrto-Alegre e certa vez, quando me explicava o seu pensamento, disse-me, “pondo o dedo no referido lugar: Aqui, Sr. Ministro, faremos “a paz“. (FRAGOSO, 1934, p. 259). À pergunta que fez Tasso Fragoso a respeito do que “iam fazer Estigarribia e Robles no interior do Rio de Grande do Sul? ”, a qual ele mesmo responde “nada” (Ibid., p. 260), talvez caiba a proposição do historiador paraguaio Arturo Bray: “necessário era, pues, destruir o exercito brasileño y paralisar a movilización argentina – de suyo lenta – con una ofensiva fulminante, que era lo ajustado a nuestra situación geográfica y estratégica” (BRAY, 1958, p. 200).

         Que Solano Lopes desejou travar uma batalha decisiva, logo ao início da guerra e longe da fronteira paraguaia, fica patente na proclamação que lançou em Passo da Pátria, no dia 10 de dezembro de 1865, às suas tropas que acabavam de retornar da campanha de Corrientes: “Mi ánimo y mis esperanzas […] fueron saludaros en LA VÍSPERA DE UNA BATALLA, lejos de nuestras fronteras”(Ibid., p207). Mas quando e onde se travaria essa batalha?

         É útil destacar que as duas colunas paraguaias foram lançadas contra Corrientes e o Rio Grande escalonadas no tempo: Robles em abril e Estigarribia em junho de 1865. Robles terminou o seu movimento em Goya e Estigarribia, de acordo com ordens que Lopes alegou ter expedido, deveria descer pela margem
esquerda do Uruguai e se manter ao norte do Butuí. Em correspondência datada de 10 de outubro ao seu Ministro da Guerra, Lopes se queixa do descumprimento de ordens de Estigarribia e afirma que o esperava num ponto próximo à fronteira brasileira, o que permite inferir que ele pretendia, à frente das forças de Robles, às quais se uniriam as de Estigarribia, bater o Exército aliado atraído à batalha.

He recibido la carta esta noche con el boletin, de cuyas noticias principales me és lícito dudar, si bien que puede haber exageración. Si lo hubiera podido adivinar que Estigarribia habría de infringir todas las instrucciones, atrincherándose em Uruguayana en vez de retirarse sobre la Tranquera de San Miguel, como le estaba mandado, Y POR ONDE LO ESPERABA, no hubiera quedado en la penosa inacción en que me he constituído y todo hubiera tenido remédio. (Ibid., p. 207). As hipóteses do plano de Solano Lopes
(Correspondência, datada de 10 de agosto, de Lopes com o General Resquin, substituto de Robles à frente da Divisão do Sul desde 24 de julho. FRAGOSO, 1934, P. 260).

       Segundo Resquin, a Divisão do Sul, sob o comando de Robles, deixou Corrientes em 18 de abril, “a buscar de paso la incorporación de la división del comandante Estigarribia, pera llevar sus operaciones sobre Concordia” (RESQUIN, 1996, p. 26). À vista da ofensiva paraguaia de 1865, da correspondência de Lopes e de testemunhos contemporâneos, podem ser aventadas duas hipóteses. A primeira, estimada para abril de 1865, conforme depoimento de Resquin, seria fazer convergir as duas colunas sobre Concórdia para atacar o Exército brasileiro que se concentrava em Paissandu. A segunda, viável até o momento que Estigarribia se deteve em Uruguaiana, segundo correspondência de Lopes, seria reunir as forças de Robles e Estigarribia para bater o Exército brasileiro atraído pela invasão ou empregar a Divisão de Robles para atacar a força aliada pela retaguarda nas Missões, quando atraída por Estigarribia. 

        Essas campanhas de 1865 resultaram em um grande fracasso para os paraguaios, que além de deixarem escapar a oportunidade de imporem derrotas decisivas aos aliados, perderam a sua esquadra na Batalha de Riachuelo (11 de junho de 1865) e a divisão de Estigarribia que se rendeu em Uruguaiana. Há um consenso entre muitos historiadores de que esse fracasso se deveu ao deficiente comando militar paraguaio, tanto de Solano Lopes, que não se colocou à frente das operações em curso, quanto de seus comandantes subordinados Robles, depois Resquin, e Estigarribia, incapazes de tomarem decisões em face de mudanças de situação.

O ataque a São Borja no dia 10 de junho começou pelo forçamento do passo do mesmo nome sobre o Rio Uruguai, 3 Km acima, ao norte da vila, que era defendido pelo 3º Batalhão, do Major Rodrigues Ramos. Por volta das 08:00 hs os brasileiros viram a extensa coluna de Estigarribia se aproximar da margem direita, vinda de São Tomé. Chegando à margem, canoas foram retiradas das carretas de transporte e colocadas n’água, nelas embarcando a infantaria. Nesse trecho, o rio Uruguai tinha uma largura de 660 metros.

A operação de transposição estava bem planejada pelos paraguaios. A um primeiro sinal de tiro de canhão, os botes foram colocados na água; ao segundo, a tropa embarcou; e ao terceiro tiro os botes começaram a se dirigir à margem oposta.
O primeiro assalto, lançado sobre o Passo, foi repelido pelo fogo do 3o BI, o que forçou os paraguaios a voltarem à sua base de partida. Depois de se reorganizarem, voltaram eles a investir remando rio acima, indo além do Passo, onde conseguiram desembarcar em vários pontos, a despeito dos esforços do 3o BI que acorreu aos locais abordados. Essa dispersão do 3o BI, com o afastamento de seu grosso, foi aproveitada pelos paraguaios para desembarcar no Passo de São Borja onde outra vaga tocou diretamente. Provavelmente essa primeira vaga de assalto paraguaia era constituída pelo Batalhão 17, do Major Diogo Alvarenga, com 800 homens e 2 peças, e pelo RC 27, do Major Lopes, com 600 homens e 2 peças, totalizando 1.400 homens. O restante da artilharia paraguaia, do outro lado do rio, apoiou a transposição.
A essa altura do combate, com os paraguaios já tendo tomado pé em vários pontos da margem esquerda, acorreu em socorro ao 3o BI, ameaçado de envolvimento, o 22o RC, do Tenente-Coronel Tristão da Nóbrega. Porém, uma nova força paraguaia interveio no combate, vinda do norte da vila, infiltrada na margem brasileira durante a noite de 9 para 10, provavelmente o Batalhão 22, do Major Avalos, com 750 homens, e o 32 RC, do Capitão Centurião, com 520, que destacou um contingente para cercar a vila por leste, com intenção de bloquear a fuga dos moradores que se preparavam para fugir. Desembarcaram em seguida no Passo de São Borja os batalhões 14 e 15, dos Capitães Merelles e Campurno, com 1.500 homens..
Aproveitando a surpresa e dispondo de grande superioridade de meios, os paraguaios obtiveram pleno sucesso na operação de transposição que fora bem planejada e muito bem executada, com sincronização dos diferentes elementos de combate e de apoio, fintas e infiltração, o que denota o preparo de seu comando e de sua tropa.

Com a transposição praticamente concluída, os paraguaios passaram à fase seguinte da operação, a conquista de São Borja. Provavelmente, foram as unidades do Capitão Diogo Alvarenga e do Major Lopes, o Batalhão 17 e o RC 27, com 4 peças de artilharia, e o destacamento lançado pela força infiltrada na véspera, somando cerca de 2.000 homens, que investiram São Borja no início da tarde. Vinham sendo retardados pelos homens do 3o Batalhão, do 22o RC e os 30 homens da reserva, somando ao todo duzentos e tantos combatentes brasileiros.
A força paraguaia, sob o comando do Major Lopes, teria entrado facilmente em São Borja, conquistando-a e aprisionando toda a população, se nesse momento não chegasse em acelerado o 1o Batalhão de Voluntários da Pátria (1o BVP), do Coronel Menna Barreto, que marchou 12 Km para entrar na refrega.
Eram 13:25hs quando o 1o BVP, a uns 600 metros a nordeste da vila, abriu fogo sobre os paraguaios que, surpreendidos pelo surgimento daquela unidade, recuaram. Menna Barreto assumiu então o comando de todas as forças brasileiras, cerca de 850 homens, reorganizando-as. Colocou o seu batalhão ao centro, o 3o BI à esquerda e 22o RC à direita e, num ato de audácia, ao som da banda de música do batalhão, com a bandeira desfraldada, atacou a linha paraguaia, desfechando simultaneamente cargas de cavalaria, pela esquerda, com 32 homens do major Fernandes de Sousa Doca, e pela direita, com os cavalarianos do 23o RC17, sob o comando do Capitão Francisco José Cardoso Tico. 

O combate durou ate às 14:17hs, com a vitória dos brasileiros.
O impacto sobre os paraguaios foi considerável, que acreditando estarem enfrentando uma força bem maior, suspenderam o seu avanço e se retiraram para o Passo, onde acamparam. Nesse combate os paraguaios tiveram cerca de 100 mortos e a mesma quantidade de feridos, devendo-se somar a essas perdas aquelas sofridas durante a transposição do rio. Os brasileiros tiveram 88 baixas, 7 mortos e 26 feridos no 1o BVP, e 20 mortos e 35 feridos nas unidades locais. Após o combate, Menna Barreto retraiu sobre a vila, protegendo-a pelo lado norte e ocupando a Praça da Matriz, tendo ainda designado a companhia do Capitão Luiz Ribeiro de Sousa Rezende para defender a rua São João, na parte oeste da vila, e a 8a companhia, do Capitão Carlos Augusto da Cunha para fazer o mesmo na rua Direita, a leste.
Na noite de 10, ouvidos os demais comandantes em conselho de guerra, todos cientes da presença na margem esquerda de mais de 4.000 paraguaios, decidiu Menna Barreto evacuar a vila, fazendo retirar naquela mesma noite quase toda a população que assim o quis. Permaneceram na vila alguns brasileiros e comerciantes estrangeiros, dentre os quais o francês Caylar, que escondeu um 2o cadete gravemente ferido, do 1o BVP, inicialmente dado como morto na parte de combate de Menna Barreto.

O êxodo da população de São Borja formou uma coluna de mais de 300 carretas na estrada para Porto Alegre, e uma multidão a cavalo e a pé, protegida pelo 1o BVP. Na manhã de 11 já tinham se afastado 18 Km e à noite foram todos acampar no capão de Santa Maria, a 42 Km da vila, ficando o 22o RC cobrindo a estrada, mais à retaguarda. Nessa mesma noite, o Coronel Fernandes de Lima, comandante da 1a Brigada, acompanhado de um piquete de 12 homens, reuniu- se aos retirantes no capão de Santa Maria.

O 28o RC, que no momento da invasão paraguaia estava ao norte do rio Camaquã, conseguiu transpor esse rio e parte dele veio cobrir a retirada das famílias, pois no dia 12 o Coronel Fernandes Lima levou o 22o RC para as proximidades de São Borja, para observar o inimigo, enquanto 1o BVP marchava para Alegrete.
Nos dias 11 os paraguaios completaram a transposição dos elementos restantes da coluna de Estigarribia, mas só entraram em São Borja no dia 12. Nesse mesmo dia, Estigarribia lançou uma força, composta por 1 companhia de infantaria e dois esquadrões de cavalaria, sob o comando do Major Lopes, para reconhecer a margem do Uruguai até o Passo de São Mateus e atacar o 28o RC, do Tenente-Coronel Coelho de Sousa, não o tendo encontrado. No dia 14, o destacamento de Lopes voltou a São Borja.

Sabendo da concentração de fugitivos na estrada de São Borja para Alegrete, Estigarribia lançou novamente, no dia 15, o Major Lopes, desta vez à frente de dois esquadrões do RC 27 e de 205 infantes do Batalhão 17, mais cerca de 90 orientais sob o comando de um ex-defensor de Paissandu, o Tenente-Coronel Salvanach, somando perto de 500 homens, para persegui-los. No dia 16, o destacamento paraguaio por pouco não alcançou o destacamento de 60 clavineiros do 28o RC, sob o comando do Major Severino Leite, que cobria a retirada das famílias na direção da Serra de Iguaiaraçá.

A notícia da invasão paraguaia alcançou o comandante de armas, o Tenente- General Caldwell, em Saican, de onde ele expediu uma série de ordens para reorientar o dispositivo de defesa da província. A 2a divisão, do Barão de Jacuí, para deixar a fronteira do Jaguarão e Bagé e marchar para o Butuí; as unidades de linha que estavam em Bagé para se concentrarem em São Gabriel; e que o 5o RC guarnecesse Alegrete, para onde transferiu o seu quartel-general. Alegrete se tornara a base de operações para enfrentar a invasão paraguaia do Rio Grande do Sul.

Por sua vez, o Brigadeiro Canabarro, comandante da 1a Divisão, determinou que a 4a Brigada, do Tenente-Coronel Sezefredo Alves Coelho de Mesquita, se aproximasse da 1a, do Coronel Fernandes Lima, que seguia a força invasora, muito embora as duas brigadas não reunissem mais de 2.500 homens, mal armados e equipados (SCHNEIDER, 1876, p. 200). A 1a Brigada recebera o 5o RC, de Passo Fundo, e a 4a Brigada, reorganizada, era constituída pelo 19o RC, pelo 26o RC de voluntários das Missões e pelo 3o BI que havia combatido em São Borja.
Quando soube da invasão, no dia 12, Canabarro escreveu a Osório, nesse dia e no dia 14, pedindo que lhe enviasse 4.000 infantes com os quais pudesse enfrentar Estigarribia. Pressionado por Mitre, Osório negou o pedido, respondendo a Canabarro em 19 de junho.

Lastimo não poder voar à parte do território de minha pátria invadida pelos bárbaros, porém entendo que devo primeiro que tudo sustentar os compromissos nacionais da Aliança e o centro donde devem partir as operações com segurança. (FRAGOSO, 1934b, p. 119)

Estigarribia, depois de saquear São Borja, partiu da vila no dia 19, tomando a direção geral sul, enquanto Lopes só retornaria à vila no dia 22, nela não mais encontrando seu comandante. Depois de reunir a cavalhada e gado que pode tomar, Lopes partiu de São Borja a 23, buscando reunir-se à sua divisão.
Chegando à margem norte do Butuí no dia 22, Estigarribia iniciou a sua transposição com canoas, que completou no dia 24, indo acampar a cerca de 6 Km ao sul do rio. Lopes que vinha à sua procura, tomou um caminho a leste, indo transpor o Butuí mais a montante, no Passo de Anna Hipólito.
Entre os dias 22 e 23, a 1a Brigada do Coronel Fernandes Lima que vinha acompanhando o grosso da coluna de Estigarribia, estava no Butuí aguardando o 28o RC que, depois de recolher suas guardas ao longo do Camaquã e reduzido a apenas 100 homens mal armados, exaustos e famintos, cruzara o rio no Rincão da Cruz, trazendo mais de 2.000 cavalos que arrebanhou das estâncias em seu caminho. No dia 25, a força de Lopes alcançou o 28o RC no local denominado Três Figueiras e depois de persegui-lo entrou em combate com a pequena força do Tenente-Coronel Coelho de Sousa no sítio do Pereira, quando os paraguaios tiveram 3 mortos e 2 feridos (SCHNEIDER, 1876, p. 201). Avisado por Coelho de Sousa da presença do destacamento de Lopes, Fernandes Lima decidiu não perder a oportunidade de aplicar um golpe nos paraguaios.

Na manhã de 26, o Coronel Fernandes Lima, sem esperar pela 4a Brigada que sabia estar vindo ao seu encontro, avançou sobre a força do Major Lopes que, alertada da aproximação dos brasileiros, posicionara-se defensivamente em uma coxilha à beira de um banhado próximo à estância Assunção. A linha paraguaia tinha à sua direita a cavalaria. Fernandes Lima dispunha de 5 regimentos de cavalaria provisórios da Guarda Nacional: o 10o, o 11o, o 22o , o 23o e o 5o, recém chegado de Passo Fundo. Lançou o 23o RC, do Tenente-Coronel Oliveira Prestes, e os clavineiros do 22o RC, sob o mando do major Doca, sobre a direita paraguaia. O 11o RC, do major Nunes, atacou o centro, e o 10o RC, do Tenente-Coronel Luz Cunha, investiu sobre a esquerda. O restante do 22o RC, do Tenente-Coronel Nóbrega, que havia lutado com bravura em São Borja, ficou em condições de apoiar os 10o e 11o RC, enquanto o 5o RC apoiava o 23o RC. O choque da cavalaria da Guarda Nacional desfez a formação paraguaia. Os clavineiros do 22o RC e o 23o RC destruíram a cavalaria da ala direita paraguaia que se colocou em fuga e foi perseguida pelo 10o RC que havia envolvido o flanco esquerdo inimigo e, colocando-se à sua retaguarda, matou quase todos os seus remanescentes. No centro e na esquerda os paraguaios conseguiram se sustentar perante o ataque do 11o RC, mas nesse momento chegou ao campo de batalha a 4a Brigada do Tenente-Coronel Sezefredo de Mesquita, o que levou os paraguaios a abandonarem sua posição original e formarem quadrado em uma baixada à sua direita. 

O Tenente-Coronel Fernandes Lima, assumindo o comando de todas as forças brasileiras, determinou então o ataque simultâneo das duas brigadas. Como a 4a brigada trazia a infantaria do Major Rodrigues Ramos, esta fez um fogo que causou vários claros no quadrado paraguaio. Carregou então sobre o inimigo o 26o das Missões que devastou o quadrado paraguaio, levando os seus sobreviventes a se refugiarem em um banhado onde a cavalaria gaúcha não podia alcançá-los, e onde esperaram a oportunidade para se internarem no mato e fugirem.
Sobreviveram ao combate de Butuí cerca de 70 paraguaios, segundo o padre Gay, testemunha da invasão do Rio Grande do Sul. Foram capturadas 2 bandeiras, muitas armas e toda cavalhada dos paraguaios. Os sobreviventes marcharam a noite inteira, descansando um pouco às 03:00hs, e prosseguindo açodadamente até as 22:00hs de 27, quando conseguiram alcançar a divisão de Estigarribia. O Tenente-Coronel oriental Salvanach, que conseguira sobreviver à destruição da ala direita que comandava, fugiu até a margem do rio Uruguai, conseguindo se reunir a Estigarribia, em Uruguaiana, 39 dias depois.

A derrota da força do Major Lopes foi completa, pagando pela primeira vez os paraguaios o preço pela invasão. Para o 3o BI e o 22o RC, que lutaram em São Borja, o combate teve o sabor de uma revanche. Depois de Butuí, os paraguaios não mais ousaram lançar destacamentos da força principal, pois Fernandes Lima cerrou sobre seu flanco esquerdo fazendo-lhe constante inquietação.

  1. CONCLUSÃO

A construção da Fronteira Sul, mais do que um processo diplomático e econômico, foi resultado de sucessivas guerras, sendo as Missões palco das mais árduas e continuadas lutas.

O Tratado de Madri desenhou uma fronteira, mas foi a vontade de homens e mulheres de muitas cores e geografias que a fizeram, dando origem ao gaúcho.


[1] Palestra realizada na 1a Brigada de Cavalaria Mecanizada, Brigada José Luiz Menna Barreto, no dia 28 de janeiro de 2022, como parte das comemorações do Centenário da Brigada. Texto e mapas extraídos dos livros “A Construção da Fronteira Sul: a Guerra de 1825” (IHGRGS, 2015) e “Cinco Séculos de História Militar do Brasil: espaço, cultura, sociedade e nação” (IHGB, 2021), obras do autor, e da comunicação “A Guerra do Prata: política, cultura e nacionalidade”, realizada pelo autor, em maio de 2012, em sessão da CEPHAS do IHGB.