Muito mais do que sessenta anos

A visita do presidente francês ao Brasil tomou os contornos de pilhéria nos poucos dias que durou o périplo macronista-lulista. A proverbial irreverência brasileira, que não perdoa qualquer deslize para a boa piada, pode até refletir a indignação popular com as declarações e imagens que tomaram os noticiários e redes sociais, mas não ajuda a compreender a gravidade dos fatos ocorridos nos três dias da visita.

Lula e Macron são presidentes impopulares de países profundamente divididos porque, dentre outros motivos, a maioria de seus cidadãos não creem que tanto um como o outro os representem. Porém, ao contrário do que os dois pretendiam com a adulação recíproca que mergulhou no ridículo, a viagem custará caro à imagem de ambos e às relações entre os dois países, quando os seus povos se derem conta do que aconteceu por aqui.

Nem sempre foi assim. Outros presidentes franceses vieram ao Brasil. Em 1964, o presidente Charles De Gaulle foi recebido no Brasil por Castello Branco. Heróis da Segunda Guerra Mundial, colocaram suas vidas e carreiras nos campos de batalha lutando contra o totalitarismo nazista. Vinte anos depois, estavam enfrentando outro totalitarismo, o soviético, investidos de responsabilidades muitos maiores. Conhecendo profundamente as respectivas nações, Castello Branco e De Gaulle estavam totalmente comprometidos em servi-las, encarnando ambos as esperanças dos povos que governavam, após a desordem e divisão que levou seus países à beira da guerra civil.

Coincidentemente, a V República do Brasil e da França tiveram neles seus fundadores, levados ao poder por rupturas institucionais que se deram pela incapacidade dos regimes anteriores em lidar com as crises que engolfaram as duas nações. Estudioso das duas situações e protagonista da História, Jarbas Passarinho não hesitava em apontar que nesses dramas políticos, o Brasil se saiu melhor do que a França, sem os traumas e violência pelos quais passaram os franceses.

A visita de De Gaulle se inseria no plano do velho general em restaurar o prestígio da França, abalado pela derrota na Indochina e pelo trauma da Guerra da Argélia. Castello Branco queria mostrar que o Brasil, longe de uma quartelada, vivia sob a institucionalidade de um regime reformista que abria um futuro promissor para o País.

De Gaulle, que jamais proferiu a famosa frase “o Brasil não é um país sério”, disse sim, após a viagem, “nada, ninguém, havia me preparado para o Marechal Castello Branco”. Nem ele veio ao Brasil para dar lições de democracia. Quando perguntou a Castello Branco como se iniciava a carreira de um ditador sul-americano, deste ouviu a resposta: “General, nós dois somos profissionais militares, no ano que vem eu me aposento definitivamente. Quais são os planos do senhor?”

A visita do presidente francês nos anos 60, desenvolvida em clima de respeito mútuo e seriedade, encaminhou a solução de questões espinhosas, como a da desapropriação de bens franceses por Vargas, e para o estabelecimento de cooperação construtiva e duradoura em várias áreas.

Muito diferente da ronda maliciosa que Macron realizou nesses três dias. Sem chegar perto da estatura política e histórica de De Gaulle, Macron fez o circuito do oportunismo, saltando da Guiana Francesa, onde foi mal recebido, para cair na pajelança conduzida por Lula em busca do apoio que lhe falta cada vez mais, aqui e lá fora.

A inacreditável sequência de absurdos começou com Lula afirmando que “queremos compartilhar com o mundo a exploração da pesquisa das nossas riquezas e biodiversidade”. Bem que Macron poderia retribuir tamanha disponibilidade com a cessão também graciosa do conhecimento no custoso projeto de submarinos brasileiros.

Mas Macron agradeceu, condecorando com a mais alta comenda francesa, a Legião de Honra, o cacique Raoni: “por tua obra, teu combate incansável, teu povo, por toda a Amazônia e seus povos autóctones: muito obrigado”, nas palavras do próprio Macron. Sem que tenha ficado claro a qual povo de Raoni o presidente francês se referia, o cacique mostrou que realmente é incansável, logo pedindo a Lula que não aprovasse a ferrovia Ferrogrão.  Em um único gesto, revelou-se a quem serve a ideologia da preservação, promovida em defesa dos povos autóctones, ou originários. Ao povo brasileiro ficou definitivamente escancarado que não é.

Macron se saiu bem. Empurrou para o agronegócio brasileiro a conta da rebelião dos agricultores franceses, com as sanções indiretas que vai impor ao Brasil através do neocolonialismo ecologista, tendo saído de fininho sem uma palavra sobre o acordo Mercosul-União Europeia, que ofereceria produtos brasileiros a preços competitivos no mercado europeu e arejaria o comércio internacional.

Por sua vez, Lula não ouviu qualquer cobrança pública de Macron sobre seu apoio tácito à Rússia na Guerra da Ucrânia, exatamente a mesma guerra que ele, Macron diz estar pronto para levar o povo francês a lutar. Mostrar uma face em casa e outra na casa do parceiro de oportunismo mostra o tipo de política que Macron se permite fazer.

A visita foi coroada por uma lista de acordos que vão do plurilinguismo ao diálogo para transição energética, sem que se saiba bem o que são um e outro, passando pela pérola da cooperação entre o Parque Amazônico da Guiana e o Parque das Montanhas do Tumucumaque, objetivando a criação de um corredor florestal entre os dois países, na prática, a violação da soberania brasileira no estado cada vez mais isolado do País, o Amapá, pela decisão infeliz de abandonar o Projeto Calha Norte, enquanto se construiu uma ponte na fronteira com a Guiana Francesa. Desde a anuência ao vergonhoso tratado que cederia quase dois terços do estado de Santa Catarina à Argentina na questão de Palmas, veementemente rejeitado pela população, não se via um desrespeito tão grande ao interesse nacional brasileiro. Quando, porventura, o Brasil tiver sérios problemas em sua fronteira norte, será preciso encontrar um outro Rio Branco para salvar a integridade territorial do País. Enquanto isso, crescerá a desconfiança em relação aos objetivos de Macron.

Brasil e França já foram aliados muito mais confiáveis um para o outro do que são hoje. Mas a grande distância entre uma situação e outra se deve a muito mais que os sessenta anos passados.

Em 1964, Brasil e Franca tinham presidentes que se pautavam pelo decoro, respeito aos seus povos e patriotismo.