O 31 de Março de 1964: História e Memória

Cerimônia de posse do Presidente Castello Branco (à esquerda) e do Vice-Presidente José Maria Alckmin (à direita) na Câmara  dos Deputados, em Brasília, a 15 de março de 1964. Ao centro, o Senador Auro de Moura Andrade, Presidente do Congresso. 
Imagem: DULLES, John W.F., “Castello Branco: o presidente reformador”. UnB: Brasilia, 1983, p. 241.

Distintamente de outras datas marcantes da nossa História, o 31 de março de 1964 está em nossa memória contemporânea.

 Os fatos, as circunstâncias e os atores desse acontecimento fazem parte da evolução política do Brasil. E é a História, como conhecimento, que pode nos oferecer a sua compreensão. Uma História à qual todos os brasileiros possam recorrer para traçar o destino do País.

Em 31 de março de 1964, o estado de Minas Gerais, contando com o apoio de tropas do Exército ali sediadas, levantou-se contra o governo do presidente João Goulart. À meia noite, o Comando do II Exército (atual Comando Militar do Sudeste), em São Paulo, aderiu ao movimento, enquanto o governo do estado da Guanabara se preparava para resistir às tropas fiéis a Goulart. Em pouco tempo, sem combates, o propalado “esquema militar” de João Goulart ruiu, o que levou o presidente a deixar o Rio de Janeiro, a ainda virtual capital da República, e Brasília, capital de fato, perdendo assim as condições de governar.

Na noite de 1º para 2 de abril, depois de o Senador Auro de Moura Andrade, Presidente do Congresso, em tensa sessão, declarar a vacância do cargo de Presidente da República e convidar o Presidente da Câmara de Deputados a assumi-lo, naquela mesma madrugada, o Deputado Ranieri Mazzilli, acompanhado de alguns parlamentares, adentrou ao Palácio do Planalto, às escuras, e tomou posse, para o que foi convocado o Presidente do STF, Ministro Ribeiro da Costa, e designado Chefe da Casa Militar o General André Fernandes.

O movimento de 31 de marco logo mostrou que não era apenas militar. O Ato Institucional Nº 1, de 9 de abril, anunciou uma revolução; legitimou-se como tal; definiu a eleição para os cargos de presidente e vice-presidente da República que haviam sido declarados vagos pelo Congresso Nacional; estabeleceu as condições de governabilidade preservando a Constituição de 1946; definiu os limites das punições contra os que haviam atentado contra a segurança do País, o regime democrático e a probidade da administração pública; e marcou para 3 de outubro de 1965 as eleições para os sucessores escolhidos completarem o presente mandato.

Dois dias depois, a 11 de abril, Castello Branco foi eleito, nas palavras do historiador norte-americano John Foster W. DULLES, “por uma esmagadora maioria no Congresso, para assumir a presidência a partir de 15“. Como assinalou Dulles, a escolha ratificava um “processo eleitoral não planejado e informal” que envolvera líderes de associações e de movimentos diversos, políticos e oficiais das forcas armadas que buscavam um nome para enfrentar a caótica situação em que fora colocado o País.

A maioria dos homens que em abril de 1964 integraram o informal colégio eleitoral buscava um presidente disciplinador, que respeitasse a legalidade e se opusesse à subversão e à corrupção. Encontraram mais do que procuravam. O novo presidente eleito, um general excepcionalmente bem preparado, estava muito melhor equipado do que eles imaginavam, em condições de tratar com os membros do Congresso no sentido de introduzir as reformas.

Com efeito, em seu primeiro dia de trabalho como presidente, 16 de abril, Castello Branco entrou em contato com o Presidente do STF para marcar a visita ao tribunal no dia seguinte e telefonou pessoalmente aos líderes no Congresso, consultando-os se seria possível virem encontrar-se com ele no Palácio do Planalto na tarde daquele dia. “Castello Branco queria fazer uma revolução com o Congresso em funcionamento, com a imprensa livre e com os Tribunais exercendo normalmente suas atribuições”, conforme apontou o jurista Oswaldo Trigueiro, e o seu ministério, “pode-se dizer que foi um dos de mais alto coeficiente intelectual em toda vida da República”.

Para a compreensão das razões que levaram ao movimento de 31 de março de 1964, é preciso recuar um pouco no tempo. No começo dos anos 60, o Brasil estava no plano inclinado do desastre. A desordem financeira, cambial, fiscal e orçamentária do governo central nas administrações anteriores encomendara inflação, desabastecimento e bloqueio de recursos externos. No contexto da Guerra Fria, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), seguindo as ordens do Partido Comunista da União Soviética, infiltrara agentes e militantes nas mais altas esferas do governo e nas Forças Armadas. A abrupta renúncia do presidente Jânio Quadros em agosto de 1961 colocou o País à beira da guerra civil. Em pouco tempo, a solução conciliatória do parlamentarismo foi inviabilizada pela campanha do presidente João Goulart em prol do presidencialismo, que uma vez restabelecido, pelo plebiscito de 1962, ao contrário do propalado pelo governo, só agravou a situação.

  A deterioração da situação política do Brasil em 1963 ficou marcada por quatro acontecimentos: o envio pelo governo do projeto de reforma agrária, rejeitado pelo Congresso; a grande reforma ministerial; a revolta dos sargentos; e a tentativa de decretação de estado de sítio.

Refletindo a decisão do PCB de estender a ação revolucionária ao campo, o governo enviou ao Congresso uma proposta de reforma agrária que foi rejeitada em maio e teve por efeito unir conservadores e liberais contra Goulart.

Em junho, procurando equilibrar-se, João Goulart promoveu uma grande reforma ministerial, mantendo o PTB em pastas chave para o trabalhismo e atraindo o PSD a posições onde necessitava de bons negociadores. Em 19 dos ministérios existentes, Goulart promoveu nada menos do que 15 trocas.

Em setembro, no dia 12, sargentos da Marinha e da Aeronáutica, sob a direção do Sargento da FAB Antonio Prestes de Paula rebelaram-se em Brasília contra a decisão do STF contrária à elegibilidade do Sargento Aimoré́ Zoch Cavalheiro à Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, e assim à de qualquer sargento. Esse era um pretexto, pois como se verificou pela apreensão dos documentos em poder dos rebeldes, tratava-se de uma insurreição tipicamente comunista, com ramificações em outros pontos do País, um episódio grave, pois resultara na prisão pelos rebeldes de um ministro do STF e do presidente em exercício da Câmara de Deputados, bem como na ocupação de algumas instalações na Capital Federal.

Logo em seguida, em reação a um pronunciamento do Governador da Guanabara, o Presidente da República cogitou decretar estado de sítio, recuando diante da reação da opinião pública e do Chefe do Estado-Maior do Exército, General-de- Exército Humberto de Alencar Castello Branco, que em ofício de 4 de outubro opinou que “parece ser um recurso desnecessário”. Esse incidente, que estava na linha do crescente autoritarismo do governo federal, procurando, por diversas formas, cercear a liberdade de imprensa, acirrou ainda mais as posições pró e contra o Presidente da República.

A sucessão de erros na economia agravada pela instabilidade política deixaria sua marca. Em 1963, o PIB per capta brasileiro recuaria, pela primeira vez desde 1941, retraindo quase 2%, uma diferença numericamente modesta, mas significativa pela reversão de uma tendência contínua de crescimento observada desde a Segunda Guerra Mundial.

Em 1964 o cenário de ruptura já́ estava configurado. O acontecimento que expôs as intenções golpistas de Goulart e suas ligações com os comunistas foi o comício realizado em frente à Central do Brasil, no Rio de Janeiro, na 6a feira, dia 13 de março, para o que foi convocada uma multidão trazida por trens e ônibus especiais e durante o qual o Presidente da República, tendo ao lado o Ministro do Exército, vociferou ameaças e conclamou todos os trabalhadores à revisão da Constituição.

No dia 19 de marco veio a reação da classe média, com a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em São Paulo. Seguiu-se, a 25, a revolta de marinheiros reunidos no Sindicatos dos Metalúrgicos, no Rio de Janeiro, os quais, depois de presos pelo Exército no Batalhão de Guardas, foram libertados por ordem de Goulart, o que provocou a demissão do Ministro da Marinha. Para agravar o ocorrido, líderes comunistas compareceram aos quartéis para verificar o cumprimento da ordem presidencial e os marinheiros soltos fizeram uma passeata em frente aos quartéis do Exército em São Cristóvão carregando nos ombros dois almirantes.

O episódio final do incitamento à desordem aconteceria no dia 30 de março, quando o Presidente da República foi recebido numa assembleia de dois mil sargentos no Automóvel Clube do Brasil e ouviu, passivo, os discursos inflamados de subtenente e sargentos, que atentavam contra a hierarquia e disciplina militar.

As razões da intervenção militar em 1964 foram expostas na Circular datada de 20 de março, expedida pelo Chefe do Estado-Maior do Exército, General Castello Branco. São 18 parágrafos, quase todos curtos, nos quais o General Castello Branco reconhece a gravidade da situação nacional, identifica as ameaças e, no tocante às Forças Armadas, reitera a sua missão constitucional, reafirma o seu compromisso com o Brasil e estabelece a “decorrente conduta militar”. A partir desse momento, pela assertividade e oportunidade do texto, Castello Branco se coloca como chefe e líder de um movimento em defesa das instituições democráticas do País.

Foi sob sua égide que se inauguraria a V República, o regime político durante o qual aconteceram os maiores avanços de desenvolvimento e as mais importantes reformas políticas, econômicas e sociais da História do País.