Guararapes, o altar da Pátria

Obra Batalha dos Guararapes, de Victor Meirelles, 1879, do acervo do Museu Nacional de Belas Artes.
A imagem descreve o momento decisivo da 1ª Batalha de Guararapes (19 de abril de 1648), no qual se destaca figura de Vidal de Negreiros, a cavalo, O pintor Victor Meirelles reuniu diferentes etapas da luta. À esquerda e à direita com Henrique Dias e Felipe Camarão, respectivamente, à frente de seus homens, e ao centro Barreto de Menezes e Fernandes Vieira, também montados. A cena, que tem por fundo a paisagem do Boqueirão dos Montes Guararapes, retrata os holandeses combatendo na ordem europeia, com couraças e alabardas, e os patriotas nos moldes da guerra brasílica, dispersos e armados com espadas e mosquetes.

A primeira batalha de Guararapes é um acontecimento de grande importância na História do Brasil, mais do que pelos aspectos militares, pelos sociais que determinaram a formação e evolução do País.

Guararapes foram as Termópilas brasileiras, com vitória. Por aqueles montes teria que passar quem demandasse ou deixasse Recife por terra, pelo Sul, sem seguir o estreito caminho da praia. Foi ali que o exército patriota escolheu enfrentar o da Companhia das Índias Ocidentais em abril de 1648, quando os holandeses partiram de Recife com a maior tropa já vista no Brasil, com o intuito de dobrar a ferro e fogo a insurreição que se levantara contra eles em Pernambuco e se espalhara de Sergipe ao Rio Grande do Norte.

Quase vinte anos de guerra haviam marcado profundamente duas gerações dos habitantes do Nordeste do Brasil desde 1630. Em plena Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) na Europa, movida por uma implacável lógica geopolítica e econômica, a Holanda, em guerra com a Espanha e com Portugal, este sob o domínio da primeira, trouxe uma guerra impiedosa ao Brasil.  Os holandeses já haviam tentado conquistar Salvador em 1624, fracassando em decorrência do cerco brasílico e da chegada de uma grande armada hispano-lusitana que retomou a cidade no ano seguinte.

Os batavos não perderam de vista, no entanto, a conquista do Nordeste brasileiro. Dali poderiam controlar o Atlântico Sul, o caminho para as Índias que queriam tomar aos portugueses, e também auferir rendimentos com a indústria do açúcar na região e com o tráfico de escravos africanos que sustentaria as suas e outras colônias. Com a sorte da guerra na Europa mudando a seu favor e tendo a ventura de capturar grandes partidas de ouro, prata e especialistas de frotas espanholas e portuguesas, os holandeses decidiram aproveitar a oportunidade para concretizar o seu sonho de se tornar uma potência marítima global, conquistando o saliente nordestino do qual controlariam todo o Atlântico Sul.

Decidiram atacar dessa vez em Pernambuco, a mais rica capitania do Brasil na primeira metade do século XVII. Para a Holanda, o pretexto da Guerra dos Trinta Anos, que opunha católicos e protestantes na Europa, e o domínio de Portugal desde 1580 pela Espanha, sua figadal inimiga, eram motivos suficientes para justificar o ataque ao Brasil, tentador domínio português, tanto do ponto de vista econômico como geopolítico.

Não faltaram dentre os próprios conselheiros da recém-criada Companhia das Índias Ocidentais quem advertisse para os riscos da empresa. Os contrários à invasão apontavam que os indígenas já estavam assimilados pela catequese católica e lutariam ao lado dos colonizadores em caso de agressão, que do vasto sertão interior afluiriam reforços para a resistência e que a cultura local repeliria qualquer elemento alienígena, tudo o que se comprovaria mais tarde.

Prevaleceu o ponto de vista dos favoráveis à invasão. Em 15 de fevereiro de 1630, uma poderosa armada despejou sobre Recife e Olinda uma força militar profissional que superou a corajosa resistência de Matias de Albuquerque à frente de uma heterogênea força de milicianos. Nos quinze anos seguintes, durante os quais a resistência local nunca cessou completamente, alternaram-se vitórias e derrotas, batalhas terrestres e navais, mas com o domínio holandês sempre se expandindo, parecendo a certa altura estar consolidado.

Em 1645 aconteceu algo totalmente inesperado para os holandeses e, até certo ponto inédito na História: uma insurreição nativa contra um invasor poderoso e bem estabelecido. Reagindo a anos de violência, humilhação, destruição, espoliação e de desrespeito à sua cultura e religião, a população do interior de Pernambuco, liderada por um punhado de homens determinados, levantou-se contra o invasor holandês, dando início à Insurreição Pernambucana, talvez a primeira guerra patriótica da era moderna.

Contando com o apoio velado do rei de Portugal, Dom João IV, e do Governador-Geral, D. Teles de Menezes, Fernandes Vieira arregimentou homens, concentrou-os na região dos atuais municípios de Vitória de Santo Antão, São Lourenço e Nazaré da Mata, a cerca de 50 Km a oeste de Recife, e dispondo da experiência militar do Sargento-Mor Antônio Dias Cardoso, à frente de 42 soldados de elite, formou uma força de combate que haveria de ser o núcleo do exército patriota.

Na batalha do Monte das Tabocas, travada em 3 de agosto de 1645, essa força heterogênea conseguiu sobreviver ao ataque da tropa holandesa enviada para destruí-la. Essa vitória dos brasílicos fez a insurreição se alastrar como fogo pelo interior do Nordeste, restando aos holandeses, em pouco tempo, apenas o domínio de Recife, Olinda, Itamaracá e os Fortes de Cabedelo e dos Reis Magos, na Paraíba e no Rio Grande do Norte.

Portugal, em luta contra a Espanha desde 1640 pela sua independência, não podia apoiar abertamente a insurreição, utilizando artifícios e estratagemas para fornecer orientação, apoio e meios aos insurgentes que tinham na figura de Vidal de Negreiros seu grande estrategista. Dessa maneira, em pouco tempo, depois da vitória do Monte das Tabocas, além da força criada por Dias Cardoso, haviam se infiltrado na área dominada pelos holandeses os terços (regimentos) de Henrique Dias, Felipe Camarão, Martim Soares Moreno e Vidal de Negreiros. O Arraial Novo do Bom Jesus, lembrando o antigo centro de resistência nas imediações de Recife, saudou o Ano-Novo de 1646 com os seus canhões, avisando aos holandeses que a resistência voltara para ficar.

Mas a Holanda não estava disposta a desistir do Brasil. No início de 1648, a direção da Companhia das Índias Ocidentais enviou consideráveis reforços a Recife com ordens para vencer a resistência a todo custo. Receberam os holandeses em Recife, no dia 18 de março, um poderoso reforço de 41 navios e 6.000 homens, com os quais decidiram romper o cerco, reconquistar o Cabo de Santo Agostinho, por onde a resistência era suprida, e levar a guerra a Salvador.

À 1 hora da madrugada de 17 de abril, 6a feira, Schkope deixou Recife com a maior força militar já vista no Brasil, 7.400 soldados, reforçados por 1.000 tapuias e 400 negros, marchando com bandeiras desfraldadas, salvas de artilharia, ao som de caixas, clarins e trombetas. A enorme coluna se dirigiu aos Afogados, onde recebeu nessa madrugada novas saudações da guarnição local, tendo por destino na primeira etapa de marcha a povoação de Muribeca de Guararapes. De Recife, foi expedida a força do Coronel Haus (derrotado em Tabocas e de volta ao Brasil), com 1.000 homens, para apresentar-se em frente ao Arraial Novo, procurando fixar os defensores naquela posição.

Ocupando Muribeca, Schkope tinha meios suficientes para se interpor entre o Arraial Novo e o Cabo de Santo Agostinho, privando a resistência dos meios que por aí fluíam, e em seguida empreender uma campanha devastadora a Porto Calvo, Alagoas, Sergipe e, quiçá́, Bahia. Era uma repetição fulminante do que fizeram em 1635. A ação de Haus defronte ao Arraial era meramente diversionária, como perceberam Vidal de Negreiros e Vieira. Por sua vez, neste mesmo dia, Barreto de Menezes, o comandante-geral das forças patriotas recentemente empossado, teve a sabedoria de convocar um conselho de guerra e ouvir as duas vozes dominantes que o aconselharam a oferecer batalha ao inimigo, Vidal e Vieira.

Depois de confirmar que a presença da força de Haus era uma mera diversão, ficou decidido que o exército patriota deixaria o Arraial Novo e marcharia ao encontro do inimigo. A essa altura, o inimigo já havia suprimido o posto nos Afogados e degolado toda a guarnição, ficando clara sua direção geral de marcha, no rumo SW. Havia dois itinerários de marcha evidentes para as forças holandesas: um litorâneo, pela praia de Jangada, onde havia uma ponte sobre pequeno curso d’água guarnecida por um posto da resistência, e o que seguia mais para o interior, na verdade já escolhido por Schkope,

Deixando o Arraial no dia 18, sábado, em marcha na direção SE, o exército patriota fez um pequeno alto na região de Ibura e ali se cogitou atrair e enfrentar o inimigo. A experiência tática e o conhecimento do terreno do Sargento-Mor Antônio Dias Cardoso foram decisivos para a escolha do campo de batalha, que não haveria de ser Ibura, mas sim um local famoso por outros combates, os Montes Guararapes. Esses montes já haviam testemunhado lutas desde o tempo da consolidação da capitania no século XVI e durante as primeiras fases da guerra em Pernambuco ocorrera aí um combate entre forças holandesas e da resistência.

Pelos montes, como se pode observar no extrato de carta topográfica abaixo, há uma ravina, na direção L-W, entre as alturas em arco ao N e uma elevação ao S, na qual hoje se vê a igreja comemorativa à vitória. Este é o local mais provável para o desenvolvimento dos acontecimentos da batalha, conforme a narrativa de Diogo Lopes Santiago. Na ravina, pelo lado sul, havia um alagado que restringia ainda mais a passagem a quem marchava de leste para oeste. Os montes não impediam a passagem, cobertos por vegetação esparsa, e na elevação norte, havia um pequeno colo, na depressão entre duas partes mais elevadas do movimento do terreno. A oeste dos montes, abria-se uma baixada, denominada de Boqueirão, que dominava a saída da passagem entre os montes.

A tropa brasílica chegou aos Montes Guararapes por volta das 10 horas da noite de sábado, onde estacionou em segurança. Ainda na madrugada de sábado para domingo, foi lançado um destacamento de Antônio Dias Cardoso para reconhecer e estabelecer contato com o inimigo. Constatando que os holandeses não se moveram nessa noite, o comando do exército patriota decidiu esperar o inimigo nos montes onde estacionara.

Ao amanhecer do dia 19, os holandeses, sem saberem da presença do exército brasílico nos Montes Guararapes, reiniciaram a sua marcha no itinerário previsto por Antônio Dias Cardoso. A essa altura, Schkope determinara que as forças do Coronel Haus, que ficara em Recife, se juntassem ao corpo principal do exército. Pouco tempo depois de iniciarem a marcha, a vanguarda holandesa entrou em contato com a pequena força de cobertura de Antônio Dias Cardoso, agora reforçada e montando cerca de 60 homens. Nessa abertura da batalha, a força de Cardoso escaramuçou habilmente com a vanguarda holandesa, atraindo-a, na frente desejada para o local desejado: o boqueirão.

Aguardavam no boqueirão, de N para o S, os regimentos de Henrique Dias, Fernandes Vieira, Vidal de Negreiros e Felipe Camarão, somando 2.200 homens, que investiram sobre a vanguarda da holandesa composta por dois regimentos de 800 e 900 homens respectivamente, dispondo de vantagem psicológica, pela surpresa, e de superioridade numérica, no momento e no local desejados. Os holandeses, mais uma vez, haviam caído na arapuca montada por Antônio Dias Cardoso. Sem dúvida surpresos, pois julgavam até então estar perseguindo os remanescentes dos Afogados, os holandeses fizeram alto, perdendo a iniciativa da ação.

Liderou o ataque, seguindo pela ravina o regimento de Vidal de Negreiros, tendo o de Felipe Camarão no seu flanco direito, marchando junto ao alagadiço. Pelos montes, à esquerda, avançou o regimento de Fernandes Vieira, tendo o de Henrique Dias no seu flanco esquerdo. Os holandeses dispararam duas rajadas de mosquetes e artilharia contra os brasileiros que avançavam sobre eles, as quais não tiveram muito efeito, provavelmente por terem sido feitas prematuramente. Ao contrário, quando chegaram próximo ao inimigo, os brasileiros dispararam uma rajada que teve efeito devastador sobre os holandeses, para o que deve ter contribuído a potência dos mosquetes biscainhos manuseados pelos homens de Henrique Dias e os de Felipe Camarão, que davam cambalhotas para trás a cada disparo, tamanha a força do recuo da arma.

Como lamentaram os holandeses mais tarde, os brasileiros os atacaram em formação dispersa, avançando rapidamente sobre eles, dificultando a sua pontaria. O efeito da rajada foi aproveitado pelos brasileiros que, ao já conhecido brado “às espadas” lançaram-se sobre os dois regimentos holandeses da vanguarda. O que aconteceu nesse momento foi outra surpresa no campo de batalha. A tradicional formação europeia de piqueiros e mosqueteiros foi rompida pelos brasileiros, que entraram pelo dispositivo holandês adentro, fazendo enorme estrago com suas espadas.

Seguiu-se o pior para os holandeses, pânico e fuga. Sem controle e comando, debandaram, e os que fugiam pela ravina, dado o pouco espaço, caíram nos alagadiços, onde muitos se atolaram, sendo caçados a tiros e cutiladas pelos brasílicos. Nos montes, à esquerda, o avanço de Fernandes Vieira e Henrique Dias levou de roldão o regimento vanguarda que vinha pela direita holandesa, fazendo com que a artilharia, os trens e a caixa de pagamento da força de Schkope caíssem em mãos dos brasileiros. Aconteceu nesse momento uma confusão do lado brasílico, que quase teve graves consequências. Os homens de Henrique Dias, no colo da elevação norte, sem notarem que, por trás do segundo cume, estava a forte reserva holandesa, lançaram-se ao saque dos trens e bagagens holandeses.

Por sua vez, Schkope, vendo sua artilharia, bagagens e dinheiro capturadas pelos brasileiros, empregou sua reserva para realizar um poderoso contra-ataque contra o flanco esquerdo brasileiro, que parece ter sido o que mais profundamente penetrou na formação holandesa, uma vez que, no flanco direito, os brasílicos caçavam os holandeses no alagadiço e ravina. O contra-ataque holandês fez recuar em desordem o regimento de Henrique Dias, e perigar todo o flanco esquerdo brasileiro. Neste momento, André Vidal de Negreiros, percebendo a gravidade da situação, constituiu uma nova reserva e atacou morro acima os holandeses. Travou-se então um ferrenho combate nos montes, nos quais se envolveram pessoalmente Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros, resultando em novo triunfo brasileiro, sucedendo-se um recuo holandês para suas formações no alto dos montes. Schkope recebeu uma grave ferida no tornozelo e por pouco não foi morto. À noite, os holandeses procederam a retirada para Afogados e em seguida para Recife.

Por qualquer ângulo que seja apreciada, a batalha de 19 de abril de 1648, a denominada 1a batalha de Guararapes, constituiu-se em decisiva e esmagadora vitória luso-brasileira. Taticamente, os brasílicos mantiveram a posse do terreno que escolheram para combater o inimigo. Além de muitas armas, dinheiro, medicamentos e 2 canhões de bronze, os brasileiros capturaram 33 das 61 bandeiras do exército da Companhia das Índias Ocidentais, incluindo o estandarte-geral com as armas dos Estados Gerais e da Companhia, símbolos incontestes do prestígio e honra de um exército nos campos de batalha na época. As baixas holandesas foram acachapantes, mais de 2.000, sendo 1.200 mortos, em que se contavam 2 coronéis, Vanelles e Haus, 22 capitães e outros176 oficiais; vários prisioneiros, dentre os quais o Coronel Kever, 4 sargentos-mores e oficiais diversos; e cerca de 700 feridos, portanto quase um terço do efetivo com que entrou em combate. A dimensão da derrota tirou muito do poder de combate da força remanescente de Schkope, que se retirou desmoralizada para Recife, de onde demoraria a sair novamente para fazer qualquer coisa. Do ponto de vista estratégico, teve duas consequências importantes: 1a) impediu o acesso dos holandeses por terra ao interior e ao sul da capitania, o que teria grande efeito junto à população que voltou às suas propriedades, reativando a produção de alimentos que era vital para a sustentação do exército patriota; 2a) tornou o cerco a Recife mais apertado e eficaz, porquanto consolidou o domínio da várzea e cercanias pelos patriotas. E politicamente deu a Portugal uma vantagem, que ainda que não tenha sido imediatamente aproveitada, pesou, certamente, nas difíceis negociações em se achava envolvido.

Em 19 de abril de 1648 reuniram-se para lutar contra o invasor homens de todas as cores, negros, índios e brancos, decididos a defender seu modo de vida e sua terra, pela primeira vez mencionada como Pátria. 

Guararapes foi mais do que uma vitória militar, foi o marco do nascimento de uma nação.

Quando retornou da Europa, ao término da Segunda Guerra Mundial, o General João Batista Mascarenhas de Moraes, acompanhado de seu oficial de operações, o Tenente-Coronel Humberto de Alencar Castello Branco, veio depositar os louros da vitória da Força Expedicionária Brasileira no campo sagrado de Guararapes.

Feliz o Exército que tem por berço o Altar da Pátria.