A Estratégia do Brasil na Guerra da Cisplatina (1825-1828)

Batalha do Passo do Rosário, apoiado no esboço do Major José Fernando de Maya Pedrosa. Reprodução: Livro História do Exército Brasileiro, 1972.

1. A Guerra de 1825

A Guerra da Cisplatina opôs o Brasil, então uma monarquia governada pela dinastia de Bragança, às Províncias Unidas do Prata, com capital em Buenos Aires, o núcleo geohistórico da atual Argentina. A despeito do conflito levar o seu nome – Cisplatina, o território compreendido entre o Rio da Prata, o Rio Uruguai, a linha longitudinal ao litoral que parte de Rio Grande e o Atlântico – o que estava em jogo era um espaço mais amplo que, a leste do Rio Uruguai, estendia-se da margem esquerda do Rio da Prata até os contrafortes da Serra Geral ao norte do Rio Jacuí, uma região disputada desde o início do século XVIII pelos núcleos geohistóricos das futuras nacionalidades que ali surgiriam. Nessa “guerra dos cem anos” sul-americana, a Guerra do Prata, que duraria até meados do século XIX, chocaram-se sucessivas projeções e projetos de poder, misturados aos interesses de potências estranhas à região.

A Guerra de 1825, um capítulo da Guerra do Prata, foi o primeiro conflito que envolveu os novos estados que surgiram da dissolução dos impérios coloniais espanhol e português na América do Sul. Embora herdasse traços estruturais da ocupação e colonização da região nos séculos XVI e XVII, bem como dos conflitos ocorridos na região ao longo do século XVIII, a Guerra da Cisplatina foi conduzida segundo as políticas dos dois novos estados que surgiam, Brasil e Províncias Unidas do Prata. Conquanto a geografia e sua derivada, a geopolítica, tenham exercido uma grande influência na formulação das respectivas políticas de guerra, aspectos econômicos, culturais e psicológicos também condicionaram tanto as políticas quanto as estratégias desenvolvidas.

2. A grande estratégia

O casus belli da Guerra de 1825 foi a Cisplatina, antiga província do Vice-Reinado do Prata, a Banda Oriental. Desde 1821, ela se achava incorporada ao Império do Brasil, numa certa condição de estado federado, ao que se opunha a Confederação das Províncias Unidas do Prata, capitaneadas por Buenos Aires, que desejava reincorporá-la ao conjunto de províncias e intendências que constituíam o Vice-Reinado criado em 1776 e desmantelado no curso dos processos de autonomia e de independência que aconteceram a partir de 1810 em função da crise da monarquia espanhola na Europa.

A grande controvérsia em torno da posse da Cisplatina residia no fato de que dela partiram as invasões ao Brasil em 1763 e 1774. Sem limites naturais importantes que a separassem do denominado continente de São Pedro do Rio Grande, a Banda Oriental se constituía na base de partida para uma expansão que poderia chegar até Santa Catarina, como não se furtaram a pensar e escrever políticos espanhóis e platinos, confirmadas essas ambições na ocupação temporária da Ilha de Santa Catarina pela esquadra de D. Pedro Ceballos em 1777

Os portugueses, por sua vez, tendo reconhecido a insustentabilidade da Colônia do Sacramento – até certo ponto uma aventura alimentada pelo comércio, contrabando e “mercantilismo à Colbert” (CESAR, 1969,p. 38) – haviam ocupado desde meados do século XVIII o território ao norte do Rio Jaguarão, graças à fortificação da Ilha de Santa Catarina e da Barra do Rio Grande, irradiando desta última posição uma colonização do interior do denominado continente de São Pedro à base de imigrantes açorianos e, principalmente, de estâncias de criação de gado que, interligadas à economia do Centro-Sul do Brasil, alteraram o panorama econômico e social da nova província e contribuíram decisivamente para ciclos econômicos e transformações no próprio Brasil-Colônia.

No início do século XIX, a despeito das flutuações, existia uma fronteira entre as zonas de ocupação espanhola e portuguesa no Prata que correspondia aproximadamente aos limites estabelecidos pelo Tratado de Madri (1750). No entanto, a instabilidade política na região gerada pela luta de independência e pela guerra civil entre as províncias que haviam formado o Vice-Reinado do Prata – a qual chegaria ao seu auge em 1820 –  abriria novas oportunidades para a contestação dessa fronteira que, embora resultasse dos êxitos militares luso-brasileiros nas guerras de 1801, 1811 e 1816, espelhava uma ocupação de fato pelas populações,  no espírito do Tratado de 1750, que desfizera de uma vez por todas a Linha de Tordesilhas.

Opunham-se, portanto, duas políticas bem definidas. De um lado, Buenos Aires, a partir da manifesta disposição de reunificar sob sua direção o conjunto de províncias do antigo Vice-Reinado, ou de pelo menos parte dele [2], tencionava reverter a situação estabelecida desde 1801, estendendo seu domínio às Missões a leste do Rio Uruguai e às faixas entre os rios Ibicuí e Quaraí e ao norte do Rio Jaguarão, no delineamento do Tratado de Santo Ildefonso (1777), e talvez mais além, mediante o desmembramento do território brasileiro até Santa Catarina.  Correlato a esse objetivo, tomou forma o projeto de uma soberania no hinterland, englobando, grosso modo, as províncias de Entre Rios, da Banda Oriental e das Missões, do qual Artigas foi o expoente.  Do outro lado, a Corte do Rio de Janeiro buscava o reconhecimento e a demarcação da linha de fronteira de 1801 que refletia a realidade da ocupação e exploração econômica da região já interligada ao núcleo do centro-sul do Brasil.

Portanto, os objetivos da guerra não estavam situados na mera posse da Cisplatina, mas em seu significado geoestratégico. A Cisplatina era a província melhor articulada maritimamente no espaço entre o Prata e o delta do Jacuí, fazia parte da grande planície entre esses rios e compartilhava com Buenos Aires o delta do Prata. Para complicar ainda mais a situação, a Guerra da Cisplatina era também um desdobramento da guerra civil entre as províncias do antigo Vice-Reinado: desde 1811. Montevidéu se tornara um polo de oposição a Buenos Aires, depois veio Artigas e, a partir de 1821, os orientais estavam divididos entre a independência e a incorporação às Províncias Unidas ou ao Brasil.

A grande estratégia seguida pelo Brasil no grande conflito da Guerra do Prata, aí incluída a Guerra da Cisplatina, enquadra-se, em linhas gerais, na aproximação indireta teorizada por Liddell Hart, a qual se inclui no terceiro modelo de plano estratégico proposto por André Beaufre.

Se, estreita a margem de liberdade de ação e limitados os meios, o objetivo é importante, procurar-se-á a decisão através de uma série de acções sucessivas, combinando, segundo a necessidade, ameaça direta e a pressão indireta com ações em força limitadas. […] Ela adapta-se, em particular, ao caso das nações defensivamente fortes, desejosas de obter progressivamente grandes resultados, engajando ofensivamente apenas meios reduzidos. (BEAUFRE, 1998 , p. 33)

                        O resultado da aplicação dessa estratégia não escapou à análise atenta de Carlos Oneto y Viana, político e intelectual uruguaio, que classificou a Convenção de 1828 – o acordo de paz que pôs fim à Guerra da Cisplatina – como “o primeiro grande triunfo da diplomacia do Império…” (VIANA,1903, p. 10). Com efeito, adotada a conceituação de Beaufre, verifica-se que o Brasil, recentemente independente, não dispunha de grande liberdade de ação e nem de meios vultosos ao alcance imediato, constituindo-se a manutenção das suas fronteiras vivas num objetivo vital de sua política externa.

Ademais, o Brasil já era, em potencial, uma nação defensivamente forte, capaz de se mobilizar quando atacada. A grande meta dos limites demarcados num arco de fronteira com repúblicas vizinhas nem sempre estáveis, dificilmente simpáticas e por vezes hostis, tinha que ser alcançada pelo Império do Brasil através de ações sucessivas, nas quais, mais do que empregar a “ameaça direta e a pressão indireta com ações em força limitadas” (BEAUFRE, 1998, p. 33), deveria combinar “ações de caráter político, diplomático ou econômico “(Ibid., p.32). Mais importante, as “ações sucessivas“ do Brasil características desse modelo estratégico ao longo dos conflitos na América do Sul durante o século XIX se ativeram a uma postura essencialmente defensiva.

                        Na questão da Cisplatina, desde a regência de D. Pedro em 1821 e 1822, antes da independência, o Brasil adotou esse modelo estratégico: procurou manter relações com as  províncias platinas vizinhas à Banda Oriental, negociou um tratado com Buenos Aires, apressou-se em estabelecer relações diplomáticas com o Paraguai e sinalizou, através de seu cônsul em Buenos Aires, Antônio Manuel Correia da Câmara, que “o Brasil, franco e leal, entregará Montevideo mediante a justa paga dos milhões que gastou e, quando livres da anarquia, as províncias deixarem de nos comprometer“ (CÂMARA, 1822), realizando, no final de 1822, uma demonstração naval na região com as fragatas União e Carolina e a corveta Liberal. As orientações expedidas por José Bonifácio, Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros do Império, ao cônsul do Brasil em Buenos Aires no sentido de buscar uma aliança com aquele governo eram claras.

3. A estratégia operacional

As atitudes do Brasil e das Províncias Unidas no campo da grande estratégia haveriam de condicionar as respectivas estratégias operacionais. A adotada pelos platinos ainda se enquadrava em um dos modelos de solução militar do jogo estratégico preconizados por Beaufre, na medida em que mobilizaram o Exército Republicano, concentraram-no no interior da Cisplatina e com ele invadiram o Rio Grande visando a destruição do Exército do Sul, apostando todos os meios numa campanha militar que culminaria numa batalha que decidiria o conflito.

Quando existem meios superiores e uma capacidade ofensiva suficientemente assegurada, a campanha visará ofensivamente a batalha decisiva. É a estratégia ofensiva de aproximação direta, onde se deve realizar a concentração do máximo de meios, visando a massa principal do inimigo” (BEAUFRE, 1998, p. 79)

Já a atitude estratégica do Brasil não se enquadrou em nenhuma aplicação clássica hoje reconhecida, o que está na origem da especulação em torno de um modelo realmente original de condução das operações militares numa moldura político-estratégica de limitações da liberdade de ação e de meios na qual o objetivo a atingir é de suma importância, no caso do Brasil, a conservação do território e o reconhecimento da fronteira. Adotados os termos atuais criados por Liddell Hart, não aconteceu, por parte do Exército imperial, uma anteposição do método indireto, da estratégia da batalha e da manobra, ao método direto escolhido pelos platinos, da “estratégia da batalha, a de Clausewitz, a estratégia de um só polo, a estratégia do aniquilamento “(HART, 1967, p. 19).

Caracterizada a situação de guerra externa, a partir de dezembro de 1825, o Brasil concentrou em 1826 um exército sobre a fronteira que, depois da campanha do ano seguinte, continuou a operar, mais recuado, na manutenção dessa mesma fronteira até o final da guerra. Uma estratégia da batalha e da manobra por parte do Exército imperial, ou das forças imperiais como um todo, aconselharia um ataque à concentração do Exército Republicano, Cisplatina adentro, ou, num quadro mais amplo, uma invasão de Entre Rios e um movimento convergente sobre Buenos Aires.

Propostas nesse sentido feitas pelos comandantes operacionais no terreno aos escalões superiores e ao governo foram peremptoriamente recusadas e o Exército do Sul, passando pelo momento crítico da campanha de 1827 – durante a qual atacou um inimigo superior em número no local por ele escolhido – ateve-se a uma estratégia territorial que combinou operações defensivas e ofensivas, sobre a qual o governo exerceu controle durante todo o tempo[3].

A situação política das Províncias Unidas não lhes impunha muitas limitações. Ao contrário, a precariedade das instituições de governo, a guerra civil entre as províncias e a dissolução da autoridade de Buenos Aires sobre as partes do antigo Vice-Reinado impeliam as lideranças portenhas a inciativas ousadas, sem muita preocupação com a discrição.

Procuraram apoios nos Estados Unidos e Inglaterra[4], e abordaram Simon Bolívar em busca de apoio diplomático e militar[5] para a guerra que iriam empreender contra o Brasil.  No campo militar, o esforço das Províncias Unidas foi direcionado a uma campanha terrestre que deveria decidir, de um só golpe, a guerra, mediante a destruição do Exército do Sul.

A campanha de 1827 iniciada pelo Exército Republicano nos últimos dias de 1826 com a invasão do Rio Grande tinha por objetivo o Exército do Sul. Numa primeira fase, o comandante republicano, General Alvear, buscou se interpor às duas partes do Exército imperial, em Santana do Livramento e Pelotas, no que falhou. Essa fase, que durou até o início de fevereiro, terminou com o êxito estratégico do comandante brasileiro, o General Felisberto Pontes Caldeira Brandt, Marquês de Barbacena, que logrou realizar nas proximidades de Bagé a junção da parte principal de seu exército com a divisão sob o comando do Marechal Brown que marchou de Pelotas.

Na segunda fase da campanha, o comandante do Exército Republicano executou, num primeiro momento, uma manobra que contém as características da aplicação clássica por Napoleão em Lodi (1796) da “manouvre sur las derrières” (CHANDLER, 1966, p. 167) que obrigou o Exército do Sul a “abandonar suas fortes posições”[6] e seguí-lo, fazendo Alvear de São Gabriel o seu “centro de operações”, do Rio Santa Maria a “barragem estratégica” e do Rio Ibicuí a “cortina de operações”.

No momento seguinte, Alvear conseguiu um êxito estratégico ao atrair o Exército imperial à batalha em local por ele escolhido e, tudo indica[7], reconhecido. Para isso, Alvear alterou seguidamente sua direção de marcha e, ao chegar à região compreendida entre os rios Vacacaí, Ibicuí e Santa Maria lançou duas ações em força contra a brigada de cavalaria ligeira de Bento Manuel que acompanhava de perto seus movimentos, expulsando-a para além do Ibicuí e do compartimento do terreno onde ela podia manter contato com o Exército Republicano. Portanto, entre os dias 15 e 17 de fevereiro, no terreno entre os rios Ibicuí e Santa Maria, Alvear obteve a superioridade estratégica-operacional que lhe permitiu encaminhar a batalha do dia 20 em condições bastante vantajosas.

Em decorrência da atitude estratégica do Brasil na guerra, a estratégia territorial adotada pelo Exército do Sul o colocava, de antemão, em nítida desvantagem perante um inimigo detentor da iniciativa, em maior número e dotado de mais mobilidade.

Composto em boa parte por milicianos da faixa de fronteira, o Exército do Sul foi tomado por viva indignação, que se estendeu à toda província do Rio Grande, diante do agravamento da invasão inimiga em São Gabriel. Premido por essas circunstâncias políticas e psicológicas, o Marquês de Barbacena não teve alternativa senão “perseguir” um inimigo que, na verdade, dispunha de liberdade de manobra para escolher o local e o momento de travar a batalha que deveria decidir a campanha.

El sentido común, la política, la razón que en ella se funda, y la crítica situación de América nos están diciendo, y enseñando a cuantos tenemos oídos para oír y ojos para ver, que una liga defensiva y ofensiva de cuantos Estados ocupan este vastísimo continente, es necesaria para que todos y cada uno de ellos pueda conservar intactas su libertad e independencia profundamente amenazadas por la irritantes pretensiones de Europa. (ALEIXO, 2012, p. 43)

            Quando o conflito se mostrou inevitável, o Brasil seguiu a mesma estratégia, atendo-se na guerra terrestre à continuação da ocupação das praças de Montevidéu e Colônia e à manutenção da fronteira do Rio Grande, enquanto no mar, empregava a ameaça direta, consubstanciada no bloqueio naval do Rio da Prata.

4. A Batalha de Passo do Rosário

O que é notável na decisão da Barbacena de procurar o combate em condições incertas é a sua determinação, dos comandantes subordinados e da tropa em fazê-lo, mesmo diante da desconfiança nascida na véspera da batalha, dia 19, quando avistaram todo o exército inimigo convergindo para o seu próprio objetivo de marcha, o Passo do Rosário.

Desde o início da campanha, orientado pela sua estratégia territorial, o exército brasileiro não se vira como o objetivo do inimigo. A decisão do conselho de guerra reunido na noite de 19 de fevereiro transparece a sensação dos comandantes de que poderiam estar correndo o risco de cair numa armadilha, o qual, não obstante, deveria ser enfrentado.

Barbacena ainda a 19 reuniu um conselho de guerra de generais e comandantes de brigada. Foram todos de opinião que se devia acometer o inimigo em qualquer lugar e disposição em que fosse encontrado (FRAGOSO, 1951, p. 241)

No dia seguinte esta determinação se confirmou quando o Exército do Sul marchou na direção do Passo do Rosário – onde se sabia que o inimigo havia acampado durante a noite e, ao encontrá-lo a uma légua  antes do Passo, não perdeu tempo em se desenvolver da coluna de marcha para o dispositivo de ataque que foi desencadeado depois do exame da situação feito pelo Marquês de Barbacena e seu Chefe de Estado-Maior, o General Brown., cuja parte de combate revela a intenção do comando do Exército do Sul.

Dou parte a V. Exa. que saindo o exército, na madrugada do dia 20 de fevereiro, da Estância de Antônio Francisco, com o fim de perseguir e obstar que o inimigo efetuasse sua retirada pelo passo do Rosário, o encontramos, às 6 horas da manhã, uma légua para cá do passo, em posição muito vantajosa, e indicando querer impedir a marcha do  nosso Exército, apesar de que o Exército estava em parte prevenido para êste encontro, não esperava contudo que o inimigo tivesse deste lado do rio tôdas as suas forças reunidas. (Ibid., p. 410)

            A esta altura da narrativa, vale a pena contrariar os conselhos de Bárbara Tuchman (A Prática da História) sobre a inconveniência de discutir as evidências diante dos leitores. É importante ampliar a apreciação sobre a questão das intenções dos comandantes antes dessa batalha, algo sempre difícil, mesmo no atual estágio de evolução da doutrina militar, a qual, se apresenta suas dificuldades no que diz respeito ao comandante direto, certamente coloca outras, muito maiores, quando se trata do comandante que está do outro lado da colina.

            Os depoimentos dos oficiais brasileiros sobre o dispositivo dos platinos antes da batalha coincidem em dois pontos:

1) as posições ocupadas pelos platinos eram vantajosas, ou seja, dominavam a área que se lhes defrontava;

2) as tropas do Exército Republicano estavam dispostas em duas linhas, com reservas, num dispositivo amplo que facultava o duplo envolvimento da força que as confrontasse.

Ora, é muito difícil aceitar que essa posição e esse dispositivo tenham sido escolhidos, reconhecidos e decididos na tarde da véspera da batalha, ainda mais se for levado em conta que o Exército Republicano, depois de chegar nesse dia ao seu objetivo de marcha no Passo do Rosário, fez vários movimentos, transpôs o rio com alguma tropa que fez retornar em seguida e mudou o lugar de seu estacionamento e trens de combate.

Os fatos registrados indicam que o comandante do Exército Republicano prosseguia no seu plano de dissimulação, agora, depois de ter atraído o seu adversário à região escolhida, buscando dar a idéia de que sua força estava em confusão.

Como se viu, o plano funcionou, e o Exército do Sul se lançou praticamente num combate de encontro, uma tese sustentada por alguns historiadores durante longo tempo sobre a batalha. Pode ter sido para os brasileiros, que rapidamente se desenvolveram e atacaram, mas não para os platinos, que, até aquele momento, seguiam seu plano operacional.

A batalha durou cerca de seis horas. As duas divisões brasileiras formaram o dispositivo de ataque com a 2a, do General Calado, à esquerda, tendo à sua frente a pequena vanguarda comandada pelo General José de Abreu, e a 1a, do General Barreto, à direita.

A 1a Divisão atacou a posição platina, repelindo a linha de atiradores inimigos que viera ao seu encontro, quase ao mesmo tempo em que a 2a Divisão recebia a carga da divisão de Lavalleja trazendo de roldão os homens de Abreu. A Divisão de Calado, nucleada nos 13o e 18o Batalhões de Caçadores, dentre os quais se encontravam veteranos nordestinos da Guerra da Independência, formou quadrado e repeliu todas as cargas de cavalaria que lhe foram dirigidas. No flanco direito, a 1a Divisão, do General Barreto, com o 27o BC à frente – uma unidade treinada no Rio de Janeiro pessoalmente pelo Imperador e composta por mercenários alemães – e mais os 3o e 4o BC, e a cavalaria que estava com essa Divisão, se lançou ao ataque, transpondo o pequeno curso d’água que dividia o campo de batalha e repelindo todos os contra-ataques da cavalaria inimiga. Mais à direita, a 2a Brigada de Cavalaria Ligeira, de Bento Gonçalves, foi superada numericamente pela cavalaria platina e lançada fora do campo de batalha. 

Diante de Barbacena, o véu estratégico com que Alvear ocultou suas intenções nas semanas anteriores de marchas em ziguezague se rompeu no nível tático da batalha, à medida que o inimigo “em retirada” brotava da colina oposta tentando envolver e destruir as duas divisões brasileiras. Por volta de uma da tarde, Barbacena decidiu se retirar na direção de Cacequi para prosseguir na sua missão defensiva.

Passo do Rosário foi uma batalha de estilo napoleônico, encaminhada pela estratégia operacional que nascera naquela época. Depois de receber no dia 17 de fevereiro a mensagem de Bento Manuel, comandante da 1a Brigada de Cavalaria Ligeira, na qual este informava que “o carretame inimigo baixou hoje [dia 15] pelo Campo de Cruz, entre o banhado do Jacaré e do Cacequi: é certa a retirada por São Simão” (FRAGOSO, 1951, p. 238, o grifo é nosso) – na verdade, uma ação de dissimulação de Alvear – tudo indica que Barbacena acreditou que o Exército Republicano infletia para oeste.

O comandante brasileiro decidiu então cruzar o rio Santa Maria mais ao sul, no Passo do Rosário, para barrar a marcha do Exército Republicano na direção do Rio Uruguai, por onde o inimigo parecia querer se retirar. No dia 19, ao verificar que o inimigo também se dirigia para o Passo do Rosário, Barbacena decidiu buscar o combate e adotou no dia seguinte um dispositivo de marcha de aproximação do qual evoluiu rapidamente para a formação de ataque.

Por sua vez, os platinos foram conduzidos por Alvear ao campo de batalha por ele escolhido debaixo de rigoroso sigilo de suas intenções: o Exército Republicano mudou de posição depois de chegar ao destino, fez alguma tropa transpor o rio e retornar à mesma margem e estacionou desordenadamente, dando a impressão de uma apressada transposição em curso e  reforçando assim o atrativo operacional para o Exército do Sul.

Curiosamente, as distintas designações da batalha para brasileiros e platinos expressam suas intenções e equívocos dessa jornada. Os brasileiros não chegaram ao Passo do Rosário e os platinos não combateram em Ituzaingô [8], na verdade um outro rio e não o arroio Imbaé, atualmente Imbé, nas proximidades do qual se deu a batalha do dia 20 de fevereiro de 1827.

Na melhor tradição napoleônica, a destruição do Exército do Sul segundo o plano traçado pelo General Alvear deveria ocorrer de acordo com os conceitos de batalha estratégica: “envolvimento, ruptura e exploração“ (CHANDLER, 1966, p. 184). Nada disso se consumou.

A superioridade em campo da cavalaria platina resultou, no máximo, num redemoinho que pilhou os trens de bagagem do exército imperial, mas não comprometeu o dispositivo das duas divisões brasileiras que, embora afastadas e sem poderem operar conjuntamente, permaneceram senhoras do terreno onde se encontravam, firmes ante a cavalaria que as assediava e sem que delas se aproximasse a infantaria inimiga.

Tampouco poderia ter ocorrido qualquer exploração do êxito onde não houvera ruptura, e muito menos uma perseguição, quando se dão as exponenciais baixas do vencido por mortes e capturas, coisa que não aconteceu. O exército imperial se retirou do campo de batalha ordenado pelo seu comandante, em passo ordinário, com a 2a Divisão à retaguarda que recolheu feridos e gado disperso, deixando apenas uma peça encravada cujo reparo havia se danificado, mantendo inteira liberdade de manobra e causando mais baixas do que sofreu. A cavalaria platina que o seguiu se manteve à distância do tiro de mosquete e rompeu contato ao anoitecer.

O plano estratégico-operacional cuidadosamente concebido e implementado por Alvear para atrair o Exército do Sul à batalha decisiva falhara devido à não destruição do Exército do Sul que se posicionou a coberto do Jacuí e continuou a operar de “fortes posições”, tanto lançando sua cavalaria na cobertura da faixa de fronteira, quanto cobrindo o caminho para Porto Alegre, enfim, prosseguindo no cumprimento da missão que lhe fora designada pela grande estratégia do governo imperial.

O resultado imediato da campanha de 1827 que culminou na batalha de 20 de fevereiro foi a retirada do Exército Republicano do território brasileiro no Rio Grande, porém, no afã de produzir uma vitória que sabia ser crucial para a sobrevivência política de seu aliado Rivadávia em Buenos Aires, Alvear expediu um boletim que fez da batalha do dia 20 uma retumbante vitória, uma percepção que influiu em toda historiografia platina sobre o conflito e chegou até os nossos dias, muito embora essa interpretação conduza ao lugar nenhum de uma “vitória” que não produziu qualquer ganho ou vantagem, militar ou diplomático, algo logicamente impossível.

Os brasileiros pretendiam interferir na transposição do Exército Republicano do rio Santa Maria e bater uma parte do exército platino na sua margem leste, no que estavam equivocados. Os platinos tinham por objetivo algo bem maior: destruir o Exército do Sul, no que falharam por falta de poder de combate. Nenhum dos contendores atingiu seus objetivos, não havendo vitória nessa batalha, ao contrário do que Alvear propalou por razões políticas.

Outros observadores do momento, mais circunspectos, souberam ler do boletim expedido por Alvear a indefinição que dela resultou, como o fez o Barão de Mareschal, embaixador austríaco na Corte do Rio de Janeiro, ao escrever ao Príncipe de Metternich, o ministro das relações exteriores da Áustria.

O Boletim de General Alvear, contido no Diário de Buenos Ayres, confirma o que eu disse a Vossa Alteza sobre a ação de 20 e 21 de fevereiro, que ele chamou a Batalha de Ituzaingó, e qualifica como vitória completa: ele estima a perda dos brasileiros em 1.200 homens e a sua em 500, e informou que apreendeu bagagem, parque e 10 peças de artilharia, porém acrescenta expressamente que o esgotamento dos cavalos não lhe permitiu perseguir o inimigo. […]

Este resultado [do Almirante Brown sobre flotilha brasileira rio Uruguai] parece muito mais importante do que a ação em terra que permaneceu indecisa e onde os brasileiros foram pela primeira vez capazes de mostrar que podiam combater, um ponto ao qual não tinham sido levados até agora. (MARESCHAL, 1827, p. 15-16)

Se os platinos cognominaram a Batalha de Ituzaingô de “a batalha das desobediências”[9], os brasileiros bem que poderiam tê-la chamado de a batalha da disciplina, quando sua infantaria demonstrou uma coragem, uma perícia e uma calma que foram reconhecidas até pelo comandante do Exército Republicano.

Ao longo da campanha de 1827, e mesmo antes, em 1826, na manutenção da linha de fronteira no Quaraí e no Jaguarão, a atuação da cavalaria brasileira foi notável, particularmente na cobertura pelas brigadas ligeiras de Bento Manuel e de Bento Gonçalves da marcha estratégica do Exército do Sul até a junção com a força do Marechal Brown, e depois, na vigilância que exerceram sobre os flancos do Exército Republicano.

A ação de cobertura da travessia do Rio Camacuã-Chico, em cheia devido às fortes chuvas, por todo o Exército do Sul, nos dias 30 e 31 de janeiro, numa operação que durou 36 horas, sem que o inimigo em contato a menos de uma légua de distância o notasse, foi, sem dúvida, o maior feito de Bento Gonçalves nessa campanha.


[1] Extrato da apresentação do autor no XXXIX Congresso Internacional de História Militar, realizado em Turim, Itália, entre 30 de agosto e 6 de setembro, a respeito do tema“Operações conjuntas e combinadas na história da guerra” e o tópico “A coordenação das operações terrestres e navais na História Moderna e Contemporânea”, sob o título acima.

[2] Após a vitória de Sucre, lugar-tenente de Bolívar, sobre os espanhóis em Ayacucho (8 de dezembro de 1824), Buenos Aires teve que aceitar a perda do Alto Perú.

[3] No ofício datado de 20 de outubro de 1826, no qual responde ao memorando de 2 de outubro de Barbacena no qual o recém nomeado comandante do Exército do Sul propunha ao Imperador um plano de guerra ofensiva no Sul, o Conde de Lages, Ministro da Guerra do Império, pergunta se a ocupação da província de Entre Rio, proposta por Barbacena, conviria à política do Império em relação às repúblicas vizinhas. No mesmo sentido, embora em nível operacional e não político, observa-se, na extensa correspondência mantida ao longo do ano de 1826 pelo comandante do Exército do Sul, General Rosado, a ênfase com que determina a Bento Manuel que se mantenha na defensiva com sua Brigada de Cavalaria Ligeira no Quaraí, evitando que se fizessem “Quixotadas, entregar o pouco que temos abandonando para isso toda a fronteira athé o Oceano” (CIDADE, 1931, p.52).

[4] “ ….Cuenta el general Tomás Iriarte en sus “Memorias”, que habiendo (Rivadavia) designado a Alvear representante ante el gobierno de Estados Unidos, le ordenó que hiciese un rodeo por Londres antes de llegar a su destino y que el objeto de este desvio era instruir canning, a cargo del ministerio de Relaciones Exteriores, del estado vidrioso de las relaciones de ambos países.” (MORENO, 1961, p.  32).

[5] “En esta instancia del problema oriental, el gobernador de Buenos Aires Juan Gregorio de Las Heras – encargado provisoriamente del Poder Ejecutivo Nacional en razón de la Ley Fundamental del 23 de enero de 1825-, y su Ministro de Relaciones Exteriores, Manuel José García, designaron a Carlos María de Alvear y José Miguel Díaz Vélez Ministros Plenipotenciarios ante Simón Bolívar en el Alto Perú, según las instrucciones con fecha de 10 de junio de 1825. Los propósitos fundamentales de la embajada eran negociar con Bolívar una alianza con las Provincias Unidas para recuperar la soberanía en la Banda Oriental, y parlamentar para que el Alto Perú tuviera representación en el Congreso de Buenos Aires” (BRONDO, 2011, p. 21-22)

[6] Segundo a descrição do segundo conselho de guerra convocado por Alvear feita pelo Coronel Brandsen, transcrita por Tasso Fragoso (FRAGOSO, 1951 p. 263).

 [7] “A 16 [Lavalleja] recebe ordens de Alvear para lhe ir ao encontro num ponto afastado dez léguas, a que se havia retirado” (Ibid., p. 265). Passo do Rosário está a essa mesma distância de São Gabriel, o local onde se encontrava Lavalleja ao receber a ordem de Alvear.

[8] Rio Branco, respondendo às perguntas de Tasso Fragoso sobre a questão da denominação dada pelos platinos ao arroio Imbaé, esclarece: “Como vê no mapa de Cabrer e dos demarcadores espanhóis e portugueses, no nome de Ituzaingó pertencia ao rio que modernamente chamva de Ibicui da Armada que desemboca na marqgem esquerda do Santa Maria” (FRAGOSO, 1951, p. 402)

[9] Tasso Fragoso transcreveu as palavras do General Paz: “Ituzaingó poderia chamar-se a batalha das desobediências: ali todos mandamos, todos combatemos e todos vencemos, guiados pelas nossas próprias inpsirações” (FRAGOSO, 1951, p. 316).