A indomável Salvador *

Ataque a Salvador em abril de 1638, de Montanus, De Nieuwe en Onbekende Weereld, Acervo da Mapoteca do Itamaraty, fonte: livro “O Exército na História do Brasil”, v.1, p. 118.

Contrariando os prognósticos da Companhia das Índias Ocidentais de uma conquista fácil do Nordeste brasileiro, depois de 8 anos de guerra, a resistência brasílica não cedia. A Salvador, na Bahia, acorriam os reforços vindo de outros pontos do Brasil e ali também aportavam as esquadras ibéricas vindas da Europa para combinarem as ações contra o invasor holandês.

Compreendendo o erro estratégico cometido pela Companhia das Índias Ocidentais, Maurício de Nassau, depois de uma bem sucedida campanha que estendeu o domínio holandês até o rio São Francisco, decidiu pôr fim de vez à guerra, conquistando Salvador.

No dia 16 de abril de 1638, a esquadra de Maurício de Nassau, composta por 35 naus e embarcações menores, com uma uma força de desembarque de 3.000 combatentes, dispondo de artilharia e material de sítio, adentrou à Baía de Todos os Santos.

Evitando as principais fortificações da cidade, a esquadra lançou a força de desembarque nas proximidades de Água de Meninos, que tomou o forte de Montserrat e consolidou sua posição na Ponta Itapagipe.

Depois de escaramuças com os defensores e de vários dias de bombardeio à cidade, no início da noite de 18 de maio, Nassau desfechou o ataque sobre a trincheira de Santo Antônio Além-do-Carmo, guarnecida pelos veteranos de Pernambuco, Terço Novo da Bahia e contingente do Mestre-de-Campo Luís Barbalho, enquanto a esquadra duelava com as fortificações.

Os 3.000 homens do escalão de assalto holandês, apoiados por intenso fogo de mosquetes e artilharia, e usando granadas e artifícios iluminativos, investiram a trincheira pelas escarpas de Água de Meninos e pela Ladeira da Água Brusca.

Com grandes ímpeto, os holandeses escalaram o parapeito da trincheira e se engalfinharam com os defensores. Por volta das oito horas da noite, a luta corpo-a-corpo chegara à Porta do Carmo, fazendo com que os baianos concentrassem ali todos os homens disponíveis.

Nesse momento, Luís Barbalho, do alto da colina à direita da trincheira onde construíra um reduto, precipita-se com seus homens, fazendo enorme alarido, sobre a retaguarda da força holandesa que, surpreendida, perde a impulsão do ataque e é obrigada a recuar.

As baixas holandesas foram expressivas nesse ataque: 335, com 104 mortos, incluídos 3 coronéis, 1 engenheiro e 5 oficiais, e 231 feridos, entre estes 1 major e 8 oficiais. Os defensores tiveram 60 mortos, incluindo 1 oficial, e mais de 100 feridos, dos quais 16 oficiais. Dias depois, morreriam mais 4 oficiais feridos, entre eles o destacado Capitão Salvador do Couto.

O sucesso da resistência brasílica contra o ataque de 18 de maio marcou o fim do sonho batavo de conquistar Salvador. Na noite de 25 de maio, silenciosamente, Maurício de Nassau embarcou suas tropas, abandonando nas trincheiras que ocupava 4 peças de 24, muitas armas e instrumentos de sapa e toda a artilharia dos fortes de Montserrat e Santo Alberto que tomara.

A batalha de Salvador, travada ente abril e maio de 1638, foi o ponto de inflexão da guerra. Quebrou-se o mito da invencibilidade holandesa em grandes ações e criou-se o mito da indomável Salvador, para onde continuariam a convergir homens, armas, ordens e recursos que haveriam de deflagrar a Insurreição Restauradora de 1645.

Pela primeira vez, uma cidade do Brasil fora capaz de se defender de um ataque em larga escala. Longe de ser uma incursão, como as que haviam acontecido e as que viriam, a batalha de 1638 foi um acontecimento decisivo da História do Brasil. Tivesse sido outro seu resultado, com uma vitória de Nassau, àquela altura, ela significaria a vitória da Holanda na guerra e seguramente a perda de todo o Brasil, alterando o curso de sua evolução histórica.

A vitória de Salvador foi uma vitória brasílica em toda sua acepção. Ao abrigo das fortificações, os defensores, boa parte deles moradores da cidade, enfrentaram dois ataques diretos holandeses, o segundo deles seguindo a melhor cartilha militar da época, com aproches, fogos de artilharia e artifícios iluminativos.

Porém, mais do que resistir, a cidade contra-atacou. Da Porta de São Bento saíram os mestres da guerra brasílica para mostrar ao inimigo que não teriam trégua. Da Porta do Carmo saiu parte da população para acorrer ao combate da noite de 18 de maio. E do reduto do Barbalho, hoje forte do mesmo nome que marca a urbanidade da Salvador contemporânea, saiu o famoso Luís que pôs fim ao ataque holandês.

* Techo do livro do autor “Cinco Séculos de História Militar do Brasil: espaço, cultura, sociedade e nação“. IHGB, 2021.