De volta à História (ou por que o Brasil deve se reencontrar com a sua História)

A perplexidade com as declarações de Trump a respeito da Guerra da Ucrânia, somadas às suas investidas retóricas contra aliados e vizinhos, desfaz-se quando se recorda um de seus decisivos discursos durante a campanha presidencial, proferido em setembro de 2024, na cidade de Warren, Michigan, estado-chave para a sua estratégia eleitoral, não por acaso, uma comunidade do subúrbio da outrora exuberante sede da indústria automobilística norte-americana, a hoje decadente Detroit.

Na hora e no lugar certos, Trump fez o discurso certo, o que os americanos queriam ouvir, exaltando o 25º presidente dos Estados Unidos, William McKinley (1897-1901).  Já como presidente, um dos primeiros atos de Trump foi fazer com que o maior pico da América do Norte, situado no Alasca, voltasse à sua denominação original, Mount McKinley, abandonando a adotada em 2015, na administração Obama: Mount Denali. Analistas apressados interpretaram as palavras e os atos de Trump como um surto protecionista apoiado em tarifas, sem dúvida, um aspecto central da política econômica de McKinley na virada do século XIX para o XX.

Porém, McKinley representa muito mais do que isso para os Estados Unidos. Sua vitória no pleito de 1896 se mostrou “tão decisiva, seu apelo a todas as classes tão eficaz, que marcou um realinhamento histórico da política americana”, como assinalou o historiador Walter Lafeber, da Universidade Cornell. 

Em 1897, ele anexou o Haiti; em 1898, fez guerra contra a Espanha por Cuba e Filipinas; em 1899, garantiu as esferas de interesse econômico estrangeiro na China; em 1901 terminou de esmagar a revolta nas Filipinas, ali estabelecendo protetorado do qual partiram missionários e mercadores americanos para a China; e assegurou o direito exclusivo para construção de um canal transoceânico no istmo panamenho ou nicaraguense. John Hay, o Secretário de Estado de McKinley, pôde então dizer que “o maior destino que o mundo já conheceu é nosso”. Começara o século americano.  

Sobre aquele período da história norte-americana, Barbara Tuchman, em A Torre do Orgulho, lembra que “a maneira como um povo pensa em dado momento não pode ser melhor caracterizada do que pela forma como procede”. E como vota, deve ser acrescentado. Em 1900, McKinley e seu mercurial vice, Theodore Roosevelt, foram reeleitos por margem ainda maior  do que em 1896. “A expansão e conquista eram assim aceitas, e o corte com o passado americano era confirmado”, arrematou Tuchman, um corte porventura similar ao desejado pelo povo americano, sinalizado tanto pela grande vitória de Trump em 2024, como pelo crescente apoio ao seu discurso, ainda aparentemente desconexo.

Para o bem ou para o mal, a História voltou à moda. Não é apenas Putin, um obcecado pela História, que a ela recorre em busca de sentido para sua política da Nova Rússia. Expressando o sentimento de seu país agredido, o historiador ucraniano Serhii Plokhy em seu livro A Guerra Russo-Ucraniana: o regresso da História, descreve o novo cenário internacional definido, dentre outros aspectos, pela “desintegração da ordem internacional posterior à Guerra Fria”, tendo a Europa e o mundo gastado “praticamente todos os dividendos da paz resultantes do colapso do Muro de Berlim, em 1989.”

A China também voltou à História, por meio de incomparável discurso de autorreflexão, desenvolvido na série A Ascensão das Grandes Potências, conforme comentado por Kissinger em seu livro Sobre a China. A série foi apresentada na TV chinesa em 2006, reunindo conferências de acadêmicos e autoridades, realizadas entre 2003 e aquele ano, na qual, dentre outros objetivos, investigava “se uma grande potência moderna podia crescer sem recorrer ao conflito militar com outros atores dominantes no sistema internacional”. A posição chinesa nela expressa levou os Estados Unidos a articularem o conceito da China como “parte interessada responsável” no sistema internacional, convidando-a a ajudar a moldá-lo. Em cerca de vinte anos, ela passou dessa condição para ameaça à segurança de seus vizinhos, elevando a tensão internacional.

O que é surpreendente é nos encontrarmos agora diante da hipótese de o líder da ordem mundial estabelecida após a Segunda Guerra e confirmada com o fim da Guerra Fria estar compartilhando com China e Rússia o desejo por uma nova ordem. 

Voltar à História pode ser bom: ela ensina. E tirar-lhe as lições certas é o apanágio dos grandes estadistas. O que é bem diferente de voltar na História. O revisionismo nas relações internacionais, além de ineficaz, costuma ser disruptivo. Nos primeiros anos do século XX, o sistema internacional construído no Congresso de Viena estava desabando sob o peso do imperialismo, nacionalismo e militarismo, acabando por ruir na Primeira Guerra Mundial. Mais de cem anos depois, pode estar acontecendo o mesmo.

 É bom o Brasil tratar de se reencontrar com a sua História, sem querer voltar-lhe os ponteiros, sem desprezar sua tradição diplomática e sem ignorar a própria grandeza que, se por um lado o faz forte, por outro, o torna alvo de ambições antigas e das inéditas que tempos estranhos oportunizam.